História

A Câmara e a Semana de 22

Historiador conta que a CMSP celebrou modernistas e pôs primeira obra moderna em um parque: Eva, de Brecheret
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Rodrigo Garcia – rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

Em três noites, o Theatro Municipal de São Paulo testemunhou uma revolução que ainda hoje, cem anos depois, mostra suas marcas na vida cultural do Brasil: a Semana de Arte Moderna de 1922. Foram gritos, aplausos, vaias (segundo alguns pesquisadores, encomendadas pelos próprios artistas). Porém, fundamentalmente, o que se viu e escutou foi uma arte ousada, em forma de quadros, esculturas, poemas e músicas.  Entretanto, o sucesso e a importância do evento não foram reconhecidos de imediato.

A Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) não participou diretamente do evento. Mas, como explicou o historiador Ubirajara de Farias Prestes Filho, que faz pesquisas no Arquivo Geral da instituição, da qual é servidor, os vereadores e o Poder Legislativo municipal têm muitas relações com a arte moderna. Em entrevista à Apartes, citou, por exemplo, uma lei que garantiu que a escultura Eva, de Vitor Brecheret, se tornasse a primeira obra de arte moderna num espaço público da cidade. Segundo o pesquisador, um parecer de 20 de junho de 1921 das Comissões Reunidas de Justiça, Obra e Finanças declarou que Eva era “explêndida”, e que nela o “o artista simbolizou, de maneira enérgica e nova, com singular maestria e muita vida, a primeira mulher”.

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Theatro Municipal foi palco de uma revolução nas artes brasileiras

Crédito: Ricardo Kleine/Theatro Municipal

O historiador também fez comentário sobre quadros modernos que fazem parte do acervo da CMSP (obras de Cândido Portinari e de Aldemir Martins, entre outros), além de ressaltar que a própria sede da CMSP, o Palácio Anchieta, incorporou tendências modernistas.

Entrevista    |     Ubirajara Prestes

O que foi a Semana de Arte Moderna?

Trata-se de um evento que ocorreu na cidade de São Paulo, em 3 noites (entre 13 e 17 de fevereiro de 1922) no Theatro Municipal. Reuniu escritores, artistas e interessados em inovações no campo das artes e literatura. Procurava-se divulgar novos conceitos e ideias, a partir da poesia, música, artes plásticas, escultura, dança, entre outras manifestações artísticas. A Semana foi organizada com o intuito de ser um marco na promoção do Modernismo no Brasil.

A proposta era debater uma nova visão da arte, inspirada nas vanguardas europeias (cubismo, futurismo, expressionismo, entre outras), por meio do rompimento com tradições culturais associadas a correntes artísticas e literárias anteriores, como o parnasianismo, o simbolismo e a arte acadêmica.

O historiador Ubirajara Prestes acredita que algum vereador tenha participado do grupo que financiou as despesas com o Theatro Municipal | Crédito: Gute Garbelotto/CMSP

Quais foram as repercussões do evento?

Sem grandes repercussões na época. A Semana de Arte Moderna foi se tornando cada vez mais celebrada ao longo do tempo. Construiu-se uma memória do movimento e da Semana, sobretudo com a influência de nomes que se consagraram em suas atividades, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Victor Brecheret, Anita Malfatti, Di Cavalcanti, Villa-Lobos, entre outros.

Qual a participação da CMSP na Semana?

Os vereadores da Primeira República eram representantes da elite paulistana, eleitos pelo poderoso Partido Repúblicano Paulista. Sabemos que a Semana de Arte Moderna contou com o apoio de nomes importantes na sociedade, como Paulo Prado, filho de Antonio Prado, ilustre representante da oligarquia cafeeira paulista, que havia sido eleito vereador e se tornou o primeiro prefeito da cidade na era republicana, entre 1899 e 1911.

Paulo Prado, mesmo envolvido com os negócios do café, apreciava as artes e a literatura. Para subsidiar as despesas do movimento, Paulo fez uma lista de subscrições, integrada por algumas pessoas de sua família, por Alberto Penteado e por outros ilustres representantes da sociedade. Não tive acesso a essa lista, mas fica uma dúvida: haveria algum representante da Câmara que eventualmente contribuiu? Meu palpite é que alguém ligado à Câmara participou. É importante lembrar que o próprio presidente do Estado, Washington Luís, apoiou a Semana de Arte Moderna. Isso aumenta a probabilidade de participação de representantes da Câmara. Aliás, o escritor Oswald de Andrade, um dos líderes modernistas, era filho do ex-vereador José Oswald Nogueira de Andrade.

Quando a CMSP passou a dar imporância à Semana?

Nos anais da Câmara não temos, na década de 1920, nenhuma menção à Semana de Arte Moderna. A primeira vez que isso ocorre é em 1937, por ocasião de um discurso em homenagem ao falecido Alberto Penteado. É dito que ele foi um dos organizadores da Semana, e são citados nomes ligados ao movimento: Paulo Prado, Oswald de Andrade, Guilherme de Almeida, René Thiollier, Menotti del Picchia, Victor Brecheret, Tarsila do Amaral e Anita Malfatti. Assim, levou certo tempo até que a memória da Semana ecoasse como um momento significativo para os vereadores.

Retrato do prefeito Fábio Prado, feito por Cândido Portinari, revela a proximidade do político com os modernistas | Crédito: Acervo CMSP

A essa altura, alguns participantes da Semana de Arte Moderna ocupavam posições de destaque no meio cultural, artístico e até político. É o caso de Mário de Andrade, que foi escolhido pelo prefeito Fábio Prado para ser o diretor do Departamento de Cultura e Recreação (atual Secretaria de Cultura) da cidade. Como o sobrenome revela, o prefeito era da tradicional família Prado e foi um apoiador das inovações culturais apresentadas na Semana. A escolha de Mário de Andrade é bastante reveladora dessa tendência, e foi um marco na história cultural da cidade.

Não é por acaso que o acervo artístico da Câmara Municipal tem um quadro feito por Cândido Portinari que retrata o prefeito Fábio Prado. É um quadro simples, mas que demonstra a ligação dos modernistas com o prefeito.

Algum participante da Semana teve envolvimento com a CMSP?

Um nome que foi celebrado na Câmara no começo da década de 1920 foi o do então jovem escultor modernista Victor Brecheret. Além da pintura, a escultura está fortemente representada nos primórdios do movimento modernista.

Brecheret havia estudado na Europa, e em 1919, ao retornar para o Brasil, foi encaminhado pelo arquiteto Ramos de Azevedo para um ateliê no Palácio das Indústrias. Foi nesse ambiente que Oswald de Andrade, Di Cavalcanti e Helios Seelinger descobriram o artista, que se tornou um tipo de estandarte do movimento modernista. Sua arte foi vista como algo novo e diferente do que havia na cidade.

Os modernistas procuraram divulgar o trabalho de Brecheret. Assim, apoiaram o Projeto 25/1921 da Câmara Municipal de São Paulo, cujo artigo 1º dizia: “Fica o prefeito autorizado a adquirir da Câmara, a estátua de mármore Eva, de Victor Brecheret”.  Esse projeto resultou na Resolução 183/1921.

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Eva, de Victor Brecheret

Crédito: Núcleo de Fotografia do CCSP

O parecer do projeto faz grandes elogios à arte inovadora de Brecheret. A escultura Eva havia sido premiada em Roma em 1919 e é vista como a primeira manifestação artística, em São Paulo, relacionada ao que viria a ser a Semana de Arte Moderna de 1922. Primeiramente, Eva foi posta no Parque do Anhangabaú. Hoje, pode ser vista no Centro Cultural São Paulo, no Paraíso.

Em 1927, outro posicionamento a favor de Brecheret ocorreu na Câmara, com a proposição do Projeto 1/1927, cujo artigo 1º dizia: “Fica o prefeito autorizado a adquirir para o município, no limite das verbas orçamentárias, uma obra do escultor Victor Brecheret”. Embora não tenhamos encontrado o desdobramento desse projeto, é provável que tenha influenciado na aquisição da obra Diana, a caçadora, exposta no Theatro Municipal e que foi produzida entre 1929 e 1930. A Indicação 2/1930 propôs à Prefeitura a aquisição dessa escultura para ser colocada no saguão do Theatro Municipal.

Outro nome importante da Semana de 1922, o poeta Guilherme de Almeida, também foi posteriormente homenageado. Ele havia participado, com José Wasth Rodrigues, da elaboração do brasão do Município, em 1917. E por meio da Resolução 5/2015, seu nome foi escolhido para uma honraria da Câmara, o Colar Guilherme de Almeida, oferecido a pessoas ou instituições que tenham prestado colaboração para um ou vários ramos da cultura e história da cidade.

É importante lembrar que Guilherme de Almeida assumiu, em 1954, a presidência da Comissão do IV Centenário, que deveria organizar os festejos da data comemorativa para a cidade. Em 9 de abril, a Câmara preparou uma sessão solene para recepcionar Almeida, que prometeu agir em parceria com os vereadores.

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Integração do Brasil na Cidade de São Paulo
O painel Integração do Brasil na Cidade de São Paulo, de Aldemir Martins, tem heranças das inovações do movimento modernista

Crédito: Acervo CMSP

Algum participante da Semana se tornou parlamentar?

O poeta Menotti del Picchia, autor de Juca Mulato e importante participante da Semana, candidatou-se ao cargo de vereador. Foi eleito suplente para a legislatura iniciada em 1926. Mas não conseguiu assumir. Depois, se tornou deputado estadual e deputado federal. Em outros períodos, após a década de 1960, recebeu homenagens na Câmara Municipal.

Quais obras modernistas do acervo da CMSP você destaca?

Temos no Palácio Anchieta algumas obras que refletem as tendências inovadoras do movimento. Trata-se de obras encomendadas para a inauguração do prédio, em 1969.

Podem ser vistos no Salão Nobre os painéis Colonizadores da Cidade de São Paulo e Partida dos Bandeirantes, de Clóvis Graciano. Nota-se o figurativismo no primeiro plano em contraste com o uso de formas geométricas para compor as construções ao fundo. Embora a técnica reflita a estética modernista, o tema apresenta uma certa contradição que faz parte do modernismo paulistano: valer-se de temáticas tradicionais para a cidade, como é o caso da fundação da vila e o elogio aos bandeirantes paulistas, algo que marcou também o IV Centenário.

Outra obra importante, que se encontra no Auditório Prestes Maia, é Integração do Brasil na Cidade de São Paulo, de Aldemir Martins. Reconhecido pelas gravuras, desenhos e pinturas de temática regionalista, Aldemir trazia em sua obra heranças das inovações do movimento modernista. A obra da Câmara apresenta seu olhar sobre paisagens e figuras brasileiras, que se fundem em São Paulo.

É importante destacar que o próprio Palácio Anchieta é um edifício característico da arquitetura moderna na área central da cidade. O movimento modernista trouxe também inovações estéticas na arquitetura, algumas delas incorporadas na sede do Poder Legislativo. É o caso da escada de 382 degraus e a fachada de vidro, que ressaltam as peculiaridades da construção.

Edição: Sândor Vasconcelos – sandor@saopaulo.sp.leg.br

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Arquitetura do Palácio Anchieta tem inovações modernistas, como a escada em forma de caracol com 382 degraus
Arquitetura do Palácio Anchieta tem inovações modernistas, como a escada em forma de caracol com 382 degraus

Crédito: Acervo CMSP

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