Perfil·Prêmios Institucionais

A rainha Anastácia

Expoente do forró, ela dá nome ao prêmio que homenageia o ritmo que já foi rejeitado, mas caiu no gosto do paulistano
Tempo estimado de leitura: 7 minutos

Rodrigo Garcia rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

Seja no bom e velho rádio, nos modernos smartphones ou nos animados bailes, o forró faz parte da cultura da cidade de São Paulo. “Agora em todos os bairros ele é cantado e dançado”, comemora a compositora e cantora Anastácia, conhecida como a “Rainha do Forró”, em entrevista à Apartes. “E aqui é curtido com um molho bem interessante: a saudade do Nordeste.”

Na capital paulista, o prestígio do estilo musical de origem nordestina é tão grande, assim como o de sua rainha, que a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) instituiu, em 2021, o Prêmio Anastácia de Forró, em homenagem a uma das principais artistas do ritmo.

Lucinete Ferreira, nome de batismo de Anastácia, nasceu no Recife em 30 de maio de 1940, começou a cantar profissionalmente aos 13 anos, como vocalista da orquestra da fábrica recifense de tecidos Othon Bezerra de Mello, onde sua mãe trabalhava.

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Anastácia e Dominguinhos (ao centro) tiveram uma parceria romântica e musical por 11 anos | Acervo Anastácia

Quando se apresentava em uma festa do Serviço Social da Indústria (Sesi), a adolescente recebeu um convite de um diretor da Rádio Jornal do Commercio, a principal de Pernambuco, para fazer um teste. Agradou e foi contratada pela emissora em 1954. Ela também se apresentava em clubes, cinemas e circos de várias cidades nordestinas com um repertório que ia do rock ao forró.

"Quando cheguei aqui, em 29 de julho de 1960, era um frio lascado e eu tive uma conexão espiritual tão forte com a cidade que nunca mais quis ir embora." Anastácia

Na época, começou a compor. “Quando comecei a namorar, com dezesseis, dezessete anos, arrumava aqueles namorados safados, que me botavam um par de chifres, eu ficava pê da vida e fazia uma musiquinha pra eles”, lembra, bem humorada, no livro O Fole roncou!: uma história do forró.

Em 1960, mudou-se para São Paulo, onde já morava a irmã Arlete. Começou a fazer participações em shows até que foi convidada a gravar o primeiro disco, lançado no ano seguinte. Só que Lucinete tomou um tremendo susto quando ouviu a notícia de que havia um disco nas lojas com suas músicas, sua voz, sua foto na capa, mas com um nome diferente: Anastácia.

Foi rapidamente para a gravadora, achando que tinham roubado sua voz e seu rosto. Um dos produtores lhe recebeu eufórico, dizendo que o disco já era um sucesso. A cantora não estava entendendo nada. Até que ele explicou: “Lucinete é um nome muito comum”.

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“Rei do Baião”, Luiz Gonzaga (sentado) foi amigo e incentivador da carreira de Anastácia | Acervo Anastácia

Anastácia explica, no livro O Fole roncou!: “No Nordeste é comum ter Lucinete, Ivonete, Marinete, Gildete.” A inspiração para o nome Anastácia foi um filme de sucesso na época, com a atriz Ingrid Bergman, que contava a história de uma princesa russa desaparecida.

Anos depois, em 1967, o cantor e amigo Luiz Gonzaga convidou Anastácia para uma turnê. Também fazia parte do show o sanfoneiro Dominguinhos. Numa manhã, bem cedo, a cantora estava em seu quarto do hotel em Aracaju (capital de Sergipe), quando escuta o músico tocar sanfona no quarto em frente. Gostou do que ouviu e escreveu uns versos para acompanhar. Atravessou o corredor, bateu na porta do vizinho e mostrou o que tinha escrito. Dominguinhos adorou o que leu: “Eu de repente vi surgir no meu caminho/Um amor tão lindo assim e cheio de carinho/Dentro de mim, vivia tamanha solidão/Mas expulsei de vez do coração”. Foi a consolidação de um romance, iniciado havia poucas semanas, e o início de uma parceria musical. Nos 11 anos de relacionamento, o casal compôs mais de 200 músicas. As mais famosas são Eu só quero um xodó e Tenho sede.

Anastácia tem mais de 600 composições em vários ritmos, gravadas por artistas como Gilberto Gil, Ângela Maria, Waldick Soriano, Gal Costa, Maria Alcina, Dóris Monteiro, Zezé di Camargo e Luciano, Daniela Mercury, Rappin’ Hood e tantos outros.

Antes do romance com Dominguinhos, foi casada com o cantor Venâncio, que fazia dupla com Corumbá. O casal teve duas filhas: Márcia e Liane. A rainha também tem três netos e quatro bisnetos. O mais velho destes será pai em junho e ela se tornará trisavó.

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Prêmio valoriza o complexo cultural do forró, nas categorias dança, música, comunicação, produção cultural e pesquisa

Não é apenas música

Segundo afirmam os ex-vereadores autores da proposta de criação do prêmio, Alfredinho, Gilberto Natalini e Soninha Francine, “o forró é um complexo cultural que não se resume somente à música, mas inclui dança, gastronomia, códigos sociais, tradições, filosofia, vestuário, literatura, artesania e assim por diante”.

O Prêmio Anastácia de Forró é dividido em cinco categorias: dança, música, comunicação, produção cultural e pesquisa. A rainha do forró se emociona ao comentar que um prêmio leva o seu nome: “As pessoas me levam pra casa quando ganham o prêmio”. “Fico muito feliz, pois eu me considero a vovó do forró”, orgulha-se.

Aos 83 anos e se preparando para gravar mais um disco, ela fez questão de ir às cerimônias de entrega dos prêmios em 2022 e 2023 (primeira e segunda edições) e já se comprometeu a comparecer também em 2024.

Quando a Apartes perguntou pra Anastácia, que compôs Eu só quero um xodó (“Eu só quero um amor/Que acabe o meu sofrer/Um xodó pra mim/Do meu jeito assim/Que alegre o meu viver”) se São Paulo era um xodó, ela não titubeou: “Sim, quando cheguei aqui, em 29 de julho de 1960, era um frio lascado e eu tive uma conexão espiritual tão forte com a cidade que nunca mais quis ir embora”.

A importância do forró é tanta para os paulistanos que a Prefeitura de São Paulo também tem um programa para incentivá-lo. Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, o programa Fomento ao Forró “busca apoiar e fomentar a pesquisa e trabalho continuado, assim como o desenvolvimento de novas ações para a linguagem forrozeira, promovendo cultura, através da linguagem forrozeira, como agente de transformação”.

As homenagens e incentivos também são federais. Em novembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que reconhece o forró como uma manifestação da cultura nacional. Por sua vez, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2021, reconheceu as matrizes tradicionais do forró como Patrimônio Cultural do Brasil.

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A rainha canta na primeira sessão solene de entrega do Prêmio Anastácia de Forró | Afonso Braga/Rede Câmara SP

Segundo a pesquisadora Rose Reis, autora do livro Nas ondas do rádio: identidade e inclusão dos nordestinos em São Paulo, atualmente existem vários tipos de forró na cidade: o pé de serra ou tradicional (geralmente tocado com sanfona, zabumba e triângulo), o universitário (variação do tradicional, mas que usa também instrumentos eletrônicos), o eletrônico, estilizado ou oxent music (com mais instrumentos como teclado ou saxofone), o romântico (mais tranquilo) e outros. E todos têm seu público.

Há quem acredite que o sucesso da música já estaria na origem da palavra “forró”, que teria sido originada nas placas nos bailes promovidos pelos ingleses que estavam construindo ferrovias no Nordeste, onde estava a escrito “for all” (para todos), significando que todos podiam entrar e se divertir. Mas muitos especialistas garantem que essa versão é falsa. A origem verdadeira de “forró” é a palavra “forrobodó”, que significa baile popular.

“Risca faca”

Apesar do sucesso, a música, porém, nem sempre foi bem aceita na cidade. Havia muito preconceito e os locais onde se tocava forró eram considerados perigosos, pois tinham a má fama de atrair brigões que usavam peixeira, eram considerados “risca faca”. Algumas casas evitavam usar o nome forró e na fachada aparecia apenas baile. “Hoje, todo mundo quer ser forrozeiro, gosta de forró, mas naquele tempo era até pejorativo: falava forró, o pessoal torcia o rosto”, conta Anastácia no livro O Fole roncou!.

Uma das primeiras casas do gênero na capital paulista foi aberta em 1964, no Brás, por Pedro de Almeida e Silva, mais conhecido como Pedro Sertanejo. Foi um sucesso, atraindo gente de todos os bairros, e se tornou um ponto de encontro dos nordestinos. “No meio do baile, meu pai pegava uma lona cheia de correspondência e distribuía cartas que vinham do Nordeste”, lembra o músico Oswaldinho do Acordeon, filho de Pedro Sertanejo, no livro O Fole roncou!. O sucesso foi tanto que o empresário, ele também músico, abriu uma gravadora de discos especializada em forró, a Cantagalo.

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O forró é sucesso em todas as regiões da cidade | Natalia Bezerra/Flickr da Prefeitura de São Paulo.

Outras que fizeram muito sucesso foram as casas do alagoano José de Barros Lima, o Zé Lagoa. Primeiro, criou a Asa Branca, em Pinheiros, e depois a Patativa, em Santo Amaro, bem maior. “Fim de semana aqui na terra da garoa/O melhor negócio é o forró do Zé Lagoa”, cantam Anastácia e Dominguinhos na música Forró do Zé Lagoa.

Contudo, apesar das multidões que as casas de forró atraíam, o preconceito continuava. Nos anos 80, a Rádio Atual, especializada em forró, enfrentava dificuldades em conseguir anunciantes. “Vocês estão malucos, não vou vincular meu produto a esse lugar”, disse um funcionário de uma agência de publicidade à pesquisadora Rose Reis, autora do livro Nas ondas do rádio: identidade e inclusão dos nordestinos em São Paulo. “Esso povo aí não consome nada”, equivocou-se outro.

“As pessoas me levam pra casa quando ganham o prêmio, fico muito feliz, pois eu me considero a vovó do forró.” Anastácia

Em 1992, o Centro de Tradições Nordestinas (CTN), ligado à Rádio Atual, foi atacado por skinheads, que picharam uma suástica (símbolo do nazismo) e escreveram: “Morte aos nordestinos”.

Porém um novo fôlego para a música veio no final da década de 90, quando estudantes de universidades de São Paulo passaram a ouvir e a tocar mais o ritmo. Um dos grupos mais famosos do forró universitário é o Falamansa, que canta: “Tô numa boa, tô aqui de novo/Daqui não saio, daqui não me movo/Tenho certeza, esse é meu lugar”. Parece um recado do forró para os paulistanos.

Edição: Sândor Vasconcelos sandor@saopaulo.sp.leg.br

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Aos 83 anos, Anastácia se diz “a vovó do forró” e promete voltar à entrega do Prêmio em 2024 | Richard Lourenço/Rede Câmara SP

Saiba mais

Livros

MARCELO, Carlos e RODRIGUES, Rosualdo. O Fole roncou!: uma história do forró. Zahar, 2012
REIS, Rose. Nas ondas do rádio: identidade e inclusão dos nordestinos em São Paulo. Cia dos Livros, 2011

Reportagens da Rede Câmara SP

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