Rodrigo Garcia rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Seja no bom e velho rádio, nos modernos smartphones ou nos animados bailes, o forró faz parte da cultura da cidade de São Paulo. “Agora em todos os bairros ele é cantado e dançado”, comemora a compositora e cantora Anastácia, conhecida como a “Rainha do Forró”, em entrevista à Apartes. “E aqui é curtido com um molho bem interessante: a saudade do Nordeste.”
Na capital paulista, o prestígio do estilo musical de origem nordestina é tão grande, assim como o de sua rainha, que a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) instituiu, em 2021, o Prêmio Anastácia de Forró, em homenagem a uma das principais artistas do ritmo.
Lucinete Ferreira, nome de batismo de Anastácia, nasceu no Recife em 30 de maio de 1940, começou a cantar profissionalmente aos 13 anos, como vocalista da orquestra da fábrica recifense de tecidos Othon Bezerra de Mello, onde sua mãe trabalhava.
Quando se apresentava em uma festa do Serviço Social da Indústria (Sesi), a adolescente recebeu um convite de um diretor da Rádio Jornal do Commercio, a principal de Pernambuco, para fazer um teste. Agradou e foi contratada pela emissora em 1954. Ela também se apresentava em clubes, cinemas e circos de várias cidades nordestinas com um repertório que ia do rock ao forró.
"Quando cheguei aqui, em 29 de julho de 1960, era um frio lascado e eu tive uma conexão espiritual tão forte com a cidade que nunca mais quis ir embora." Anastácia
Na época, começou a compor. “Quando comecei a namorar, com dezesseis, dezessete anos, arrumava aqueles namorados safados, que me botavam um par de chifres, eu ficava pê da vida e fazia uma musiquinha pra eles”, lembra, bem humorada, no livro O Fole roncou!: uma história do forró.
Em 1960, mudou-se para São Paulo, onde já morava a irmã Arlete. Começou a fazer participações em shows até que foi convidada a gravar o primeiro disco, lançado no ano seguinte. Só que Lucinete tomou um tremendo susto quando ouviu a notícia de que havia um disco nas lojas com suas músicas, sua voz, sua foto na capa, mas com um nome diferente: Anastácia.
Foi rapidamente para a gravadora, achando que tinham roubado sua voz e seu rosto. Um dos produtores lhe recebeu eufórico, dizendo que o disco já era um sucesso. A cantora não estava entendendo nada. Até que ele explicou: “Lucinete é um nome muito comum”.
Anastácia explica, no livro O Fole roncou!: “No Nordeste é comum ter Lucinete, Ivonete, Marinete, Gildete.” A inspiração para o nome Anastácia foi um filme de sucesso na época, com a atriz Ingrid Bergman, que contava a história de uma princesa russa desaparecida.
Anos depois, em 1967, o cantor e amigo Luiz Gonzaga convidou Anastácia para uma turnê. Também fazia parte do show o sanfoneiro Dominguinhos. Numa manhã, bem cedo, a cantora estava em seu quarto do hotel em Aracaju (capital de Sergipe), quando escuta o músico tocar sanfona no quarto em frente. Gostou do que ouviu e escreveu uns versos para acompanhar. Atravessou o corredor, bateu na porta do vizinho e mostrou o que tinha escrito. Dominguinhos adorou o que leu: “Eu de repente vi surgir no meu caminho/Um amor tão lindo assim e cheio de carinho/Dentro de mim, vivia tamanha solidão/Mas expulsei de vez do coração”. Foi a consolidação de um romance, iniciado havia poucas semanas, e o início de uma parceria musical. Nos 11 anos de relacionamento, o casal compôs mais de 200 músicas. As mais famosas são Eu só quero um xodó e Tenho sede.
Anastácia tem mais de 600 composições em vários ritmos, gravadas por artistas como Gilberto Gil, Ângela Maria, Waldick Soriano, Gal Costa, Maria Alcina, Dóris Monteiro, Zezé di Camargo e Luciano, Daniela Mercury, Rappin’ Hood e tantos outros.
Antes do romance com Dominguinhos, foi casada com o cantor Venâncio, que fazia dupla com Corumbá. O casal teve duas filhas: Márcia e Liane. A rainha também tem três netos e quatro bisnetos. O mais velho destes será pai em junho e ela se tornará trisavó.
Não é apenas música
Segundo afirmam os ex-vereadores autores da proposta de criação do prêmio, Alfredinho, Gilberto Natalini e Soninha Francine, “o forró é um complexo cultural que não se resume somente à música, mas inclui dança, gastronomia, códigos sociais, tradições, filosofia, vestuário, literatura, artesania e assim por diante”.
O Prêmio Anastácia de Forró é dividido em cinco categorias: dança, música, comunicação, produção cultural e pesquisa. A rainha do forró se emociona ao comentar que um prêmio leva o seu nome: “As pessoas me levam pra casa quando ganham o prêmio”. “Fico muito feliz, pois eu me considero a vovó do forró”, orgulha-se.
Aos 83 anos e se preparando para gravar mais um disco, ela fez questão de ir às cerimônias de entrega dos prêmios em 2022 e 2023 (primeira e segunda edições) e já se comprometeu a comparecer também em 2024.
Quando a Apartes perguntou pra Anastácia, que compôs Eu só quero um xodó (“Eu só quero um amor/Que acabe o meu sofrer/Um xodó pra mim/Do meu jeito assim/Que alegre o meu viver”) se São Paulo era um xodó, ela não titubeou: “Sim, quando cheguei aqui, em 29 de julho de 1960, era um frio lascado e eu tive uma conexão espiritual tão forte com a cidade que nunca mais quis ir embora”.
A importância do forró é tanta para os paulistanos que a Prefeitura de São Paulo também tem um programa para incentivá-lo. Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, o programa Fomento ao Forró “busca apoiar e fomentar a pesquisa e trabalho continuado, assim como o desenvolvimento de novas ações para a linguagem forrozeira, promovendo cultura, através da linguagem forrozeira, como agente de transformação”.
As homenagens e incentivos também são federais. Em novembro de 2023, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou uma lei que reconhece o forró como uma manifestação da cultura nacional. Por sua vez, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 2021, reconheceu as matrizes tradicionais do forró como Patrimônio Cultural do Brasil.
Segundo a pesquisadora Rose Reis, autora do livro Nas ondas do rádio: identidade e inclusão dos nordestinos em São Paulo, atualmente existem vários tipos de forró na cidade: o pé de serra ou tradicional (geralmente tocado com sanfona, zabumba e triângulo), o universitário (variação do tradicional, mas que usa também instrumentos eletrônicos), o eletrônico, estilizado ou oxent music (com mais instrumentos como teclado ou saxofone), o romântico (mais tranquilo) e outros. E todos têm seu público.
Há quem acredite que o sucesso da música já estaria na origem da palavra “forró”, que teria sido originada nas placas nos bailes promovidos pelos ingleses que estavam construindo ferrovias no Nordeste, onde estava a escrito “for all” (para todos), significando que todos podiam entrar e se divertir. Mas muitos especialistas garantem que essa versão é falsa. A origem verdadeira de “forró” é a palavra “forrobodó”, que significa baile popular.
“Risca faca”
Apesar do sucesso, a música, porém, nem sempre foi bem aceita na cidade. Havia muito preconceito e os locais onde se tocava forró eram considerados perigosos, pois tinham a má fama de atrair brigões que usavam peixeira, eram considerados “risca faca”. Algumas casas evitavam usar o nome forró e na fachada aparecia apenas baile. “Hoje, todo mundo quer ser forrozeiro, gosta de forró, mas naquele tempo era até pejorativo: falava forró, o pessoal torcia o rosto”, conta Anastácia no livro O Fole roncou!.
Uma das primeiras casas do gênero na capital paulista foi aberta em 1964, no Brás, por Pedro de Almeida e Silva, mais conhecido como Pedro Sertanejo. Foi um sucesso, atraindo gente de todos os bairros, e se tornou um ponto de encontro dos nordestinos. “No meio do baile, meu pai pegava uma lona cheia de correspondência e distribuía cartas que vinham do Nordeste”, lembra o músico Oswaldinho do Acordeon, filho de Pedro Sertanejo, no livro O Fole roncou!. O sucesso foi tanto que o empresário, ele também músico, abriu uma gravadora de discos especializada em forró, a Cantagalo.
Outras que fizeram muito sucesso foram as casas do alagoano José de Barros Lima, o Zé Lagoa. Primeiro, criou a Asa Branca, em Pinheiros, e depois a Patativa, em Santo Amaro, bem maior. “Fim de semana aqui na terra da garoa/O melhor negócio é o forró do Zé Lagoa”, cantam Anastácia e Dominguinhos na música Forró do Zé Lagoa.
Contudo, apesar das multidões que as casas de forró atraíam, o preconceito continuava. Nos anos 80, a Rádio Atual, especializada em forró, enfrentava dificuldades em conseguir anunciantes. “Vocês estão malucos, não vou vincular meu produto a esse lugar”, disse um funcionário de uma agência de publicidade à pesquisadora Rose Reis, autora do livro Nas ondas do rádio: identidade e inclusão dos nordestinos em São Paulo. “Esso povo aí não consome nada”, equivocou-se outro.
“As pessoas me levam pra casa quando ganham o prêmio, fico muito feliz, pois eu me considero a vovó do forró.” Anastácia
Em 1992, o Centro de Tradições Nordestinas (CTN), ligado à Rádio Atual, foi atacado por skinheads, que picharam uma suástica (símbolo do nazismo) e escreveram: “Morte aos nordestinos”.
Porém um novo fôlego para a música veio no final da década de 90, quando estudantes de universidades de São Paulo passaram a ouvir e a tocar mais o ritmo. Um dos grupos mais famosos do forró universitário é o Falamansa, que canta: “Tô numa boa, tô aqui de novo/Daqui não saio, daqui não me movo/Tenho certeza, esse é meu lugar”. Parece um recado do forró para os paulistanos.
Edição: Sândor Vasconcelos sandor@saopaulo.sp.leg.br
Saiba mais
Livros
MARCELO, Carlos e RODRIGUES, Rosualdo. O Fole roncou!: uma história do forró. Zahar, 2012
REIS, Rose. Nas ondas do rádio: identidade e inclusão dos nordestinos em São Paulo. Cia dos Livros, 2011
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