História

Chuva de bombas em São Paulo

Em 1924 a cidade foi atacada por aviões, incendiada e saqueada
Tempo estimado de leitura: 8 minutos

Texto: Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

Aos oito anos, a futura escritora Zélia Gattai chegou à escola e teve uma surpresa: naquele dia, em julho de 1924, não haveria aula. Estava em curso uma revolta militar na cidade.  Ao voltar para casa, encontrou a família muito aflita. “Ninguém conhecia detalhes da tal revolução”, escreveria, anos depois, Zélia em Anarquistas graças a Deus, seu primeiro livro de memórias. “Mamãe demonstrava sua aflição andando de um lado pra outro, como barata tonta”.

Seus pais tomaram duas decisões: estocar comida e salvar os parentes que moravam no Brás, um dos bairros paulistanos que mais sofreram com os ataques. No dia seguinte, o pai foi de carro resgatar a turma. Foi uma temporada de preocupações na casa dos Gattais.

Para diversos moradores da capital paulista, contudo, a situação foi muito pior do que a menina Zélia podia imaginar.

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A Estação da Luz foi um dos primeiros locais ocupados pelos revolucionários | Guilherme Gaensly/Acervo do Arquivo Público do Estado de São Paulo

A Revolução de 1924 (ou revolta, como também é conhecido o movimento) começou em 5 de julho, quando soldados rebelados do Exército e da Força Pública (antecessora da Polícia Militar) ocuparam quartéis nos bairros Luz e Santana, sem grandes esforços. A Estação da Luz, de onde partem importantes ferrovias da cidade, também foi ocupada. O principal objetivo dos revolucionários era derrubar o presidente do Brasil, Arthur Bernardes. Para essa missão, esperavam contar com a ajuda de revolucionários de outros estados.

A reação das tropas legalistas (do governo estadual e do federal) foi violenta. Após 23 dias de conflito, com bombardeio constante da capital, o saldo foi de 503 mortos e 4.800 feridos, segundo os dados oficiais do governo do Estado. Dois terços das vítimas eram civis. Os acontecimentos também provocaram o êxodo de 300 mil moradores para outros bairros e cidades (na época, a população era de 700 mil pessoas). Entre os que deixaram suas casas estava o presidente do Estado (como o governador era chamado na época), Carlos de Campos, que foi para o bairro da Penha.

O historiador Moacir Assunção, autor do livro São Paulo deve ser destruída – a história do bombardeio à capital na revolta de 1924, explicou à Apartes o motivo de tanta destruição: “O governo federal e o estadual usaram um método muito cruel de combate, o bombardeio terrificante, em que não há a preocupação de ocupar áreas, mas de aterrorizar os habitantes para que se insurjam contra os ocupantes”. Ou seja, os ataques eram para que a população ficasse contra os revoltosos que dominavam a cidade.

O ministro da Guerra, marechal Setembrino de Carvalho, justificou a força dos ataques contra a cidade. “Os danos materiais de um bombardeio podem ser facilmente reparados, principalmente quando se trata de uma cidade servida pela fecunda atividade de um povo laborioso, mas os prejuízos morais, esses não são suscetíveis de reparação”, declarou o militar a líderes da sociedade civil paulistana que foram lhe pedir para interromper os bombardeios a São Paulo, já que os revoltosos tinham se comprometido com uma trégua.

O governador Campos também apresentou sua justificativa. “Estou certo de que São Paulo prefere ver destruída sua bela capital antes do que destruída a legalidade”.

Fala a metralha/Responde o canhão

A Revolução de 1924 fez parte do movimento conhecido como tenentismo, no qual oficiais de baixa patente do Exército atacavam as práticas da Primeira República (corrupção, eleições fraudadas, poder das oligarquias estaduais) e tentavam derrubar o governo federal. Também defendiam o voto secreto.

O presidente Arthur Bernardes governava o Brasil com mão de ferro, valendo-se da decretação de estado de sítio e da perseguição a adversários políticos e operários.

Entre os participantes da Revolução, os principais nomes eram os de Miguel Costa, Joaquim Távora, Eduardo Gomes e João Cabanas. O comandante supremo era Isidoro Dias Lopes.

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Para a CMSP, Isidoro Dias Lopes, comandante supremo de 1924, passou de líder dos desordeiros a herói | Crédito: Alesp

General da reserva com 59 anos, Isidoro tinha experiência na luta política: havia participado do movimento militar que proclamou a República, em 1889, e de uma tentativa de depor o presidente Floriano Peixoto em 1893.

Dois irmãos mais velhos de Zélia Gattai não participaram dos combates de 24, mas cantavam entusiasmados: “Fala a metralha/ responde o canhão/ o Isidoro Lopes vai ganhar a revolução” e “Isidoro não tem medo/ nem tampouco tem preguiça/ vai fazer do Arthur Bernardes/ Um pedaço de linguiça”.

Em 9 de julho, após ataque ao Palácio dos Campos Elíseos, na época sede do governo do Estado, Carlos de Campos decidiu abandonar o centro da cidade e foi para a estação ferroviária de Guaiaúna, no bairro da Penha, subúrbio de São Paulo, onde liderou a resistência a partir de um gabinete instalado em um vagão de trem.

Caos

Nos bairros mais urbanizados e centrais, os revoltosos, vendo a fuga do governador, sentiram-se poderosos. Mas não queriam o poder estadual e chamaram o ex-vereador e ex-prefeito Antonio da Silva Prado para assumir o cargo de governador, que recusou o convite.

Os combates se intensificavam. Aviões do governo federal jogavam bombas e granadas. O presidente da Associação Comercial de São Paulo (ACSP), José Carlos de Macedo Soares, testemunhou um desses bombardeios, em 22 de julho. Segundo ele, por volta das 15h30, “a cidade começava a sentir, com espanto, o bombardeio. Aeroplanos legalistas, voando a mais de mil metros, quase sumidos no céu, deram de despejar pesadas cargas de explosivos, que estouravam nas ruas, esburacando-as e matando e esfacelando os habitantes”.

Instalou-se o caos. Houve incêndios, desabastecimentos, saques, roubos, casas e prédios foram demolidos, muitas explosões de bombas, ataques aéreos, soldados armados, população assustada, tanques de guerra cruzando a cidade e trincheiras abertas com os paralelepípedos retirados das ruas.

Algumas cicatrizes podem ser vistas até hoje, como marcas de balas na Igreja Santa Ifigênia e no Liceu Sagrado Coração de Jesus, ambos na região central.

Com o comércio fechado, os paulistanos começaram a ficar sem comida. Assim, iniciaram-se os saques. O sapateiro e sindicalista Pedro Catalo relata, no livro Novos rumos, pesquisa social, do historiador Edgar Rodrigues, que “por semanas inteiras, via-se a multidão carregando de tudo, desde farinha e outros comestíveis até casimira, remédios, panelas, louça de todos os tipos e até aparelhos sanitários”.

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Revolucionários fizeram trincheiras nas ruas de São Paulo para conter o avanço das tropas legalistas | Crédito: Alesp
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Prefeito Firmiano de Morais Pinto, uma das poucas autoridades a ficar no cargo durante o conflito | Crédito: Alesp

Uma das poucas autoridades a ficar no posto foi o prefeito de São Paulo, Firmiano de Morais Pinto, que articulou com representantes da sociedade civil formas de amenizar os sofrimentos dos paulistanos. Ele e o presidente da Associação Comercial negociaram com Isidoro Dias Lopes para que se restabelecesse o controle policial nas ruas, com o objetivo de coibir os saques. Foi criada uma Guarda Cívica, responsável pelo policiamento da cidade.

Além disso, a Prefeitura e a ACSP instalaram uma Comissão de Abastecimento, encarregada de estabelecer uma tabela de preços dos gêneros alimentícios e controlar os estoques, procurando evitar a especulação e a formação de monopólios.

Em 15 de julho, o arcebispo de São Paulo, dom Duarte Leopoldo e Silva, publicou no jornal O Estado de S. Paulo um apelo aos “católicos em geral”, pedindo aos padres, às instituições religiosas e aos fiéis, sem distinção e na medida do possível, “a prática da caridade”. Os escoteiros também se juntaram aos esforços de ajuda aos necessitados, organizando abrigos para desalojados.

Enquanto a população tentava sobreviver ao caos, os ataques das forças legalistas se intensificavam e os revoltosos procuravam uma solução. Propuseram se render em troca de uma anistia, mas não obtiveram nada, a não ser a ameaça de um bombardeio total.

Na madrugada de 28 de julho, Isidoro decide sair da cidade, alegando não querer ser “o coveiro de São Paulo”. O comboio rebelde, com 3.500 soldados, cavalos, canhões e outras armas, saiu de trem em direção a Campinas.

Houve denúncias de que também levaram dinheiro roubado. “O primeiro cuidado dos seus chefes, na retirada, foi o transporte de caixões de dinheiro roubado que servirá para proporcionar a abastança que, com o trabalho honesto, nunca tiveram valor de alcançar”, acusou o então vereador Luiz Augusto Pereira de Queiroz.

Na manhã do dia 28, o governador voltou ao Palácio e o presidente da ACSP divulgou uma nota afirmando que “já é possível, necessário mesmo, que seja recomeçada a vida de trabalho”. Tinha acabado a Revolução de 1924.

Em 7 de agosto, a Câmara Municipal realizou sua primeira sessão após os conflitos. A coragem do governador de São Paulo e a do presidente do Brasil são exaltadas por todos. Os vereadores decidiram que uma comissão iria ao Palácio dos Campos Elísios cumprimentar pessoalmente o chefe do Executivo estadual.

Pereira de Queiroz solicitou que ficasse registrado a profunda admiração ao governador, “cuja ação patriótica e enérgica não teve um momento sequer de desfalecimento”. No mesmo discurso, o parlamentar informou que os revoltosos chegaram a decretar ordem de prisão “vivo ou morto” para alguns vereadores.

Tenentismo no poder

Em abril de 1925, os revolucionários paulistas se encontraram com os revoltosos que estavam fugindo do Rio Grande do Sul, liderados por Luís Carlos Prestes, capitão do Exército, em Foz do Iguaçu (PR). Com a união dos dois grupos, foi formada a Coluna Miguel Costa-Prestes. Um dos líderes da Revolução de 1924, Miguel Costa era major da Força Pública de São Paulo. Isidoro Dias Lopes foi para o exílio na Argentina.

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Quartel da Luz foi uma das primeiras posições ocupadas pelos revolucionários em 5 de julho de 1924 | Crédito: Alesp

O movimento, também conhecido como Coluna Invicta, foi composto por 1,5 mil homens, durou dois anos e meio e percorreu 13 estados do Brasil até entrar na Bolívia, onde seus membros pediram asilo político.

Seis anos depois da Revolução de 24, um movimento cívico-militar levou ao poder alguns dos ideais tenentistas. A Revolução de 1930, que acabou com a Primeira República (1889-1930), transformou em heróis muitos dos que participaram da revolta em São Paulo.

Linha do tempo

5/7

Começa a Revolução de 1924

9/7

Revoltosos ocupam a sede do governo estadual

11/7

Forças legalistas bombardeiam São Paulo

28/7

Revoltosos saem da cidade

7/8

Câmara Municipal volta a se reunir

1930

Cai a República do Café com Leite

1949

Vereadores homenageiam Isidoro Dias Lopes

Quando o general Isidoro Dias Lopes (participante das Revoluções de 24, 30 e da Constitucionalista de 32) morreu, em 27 de maio de 1949, a Câmara aprovou um voto de pesar. O vereador Carlos Afrânio Cunha Mattos, que combateu ao lado dos revoltosos em 1924, disse que Lopes era “um grande soldado, bravo e querido” e que ficou gravado na lembrança “a dedicação com que Isidoro tratou a nossa cidade e o nosso povo”.

Bem diferente dos termos com os quais os vereadores se referiram aos revoltosos em 1924: salteadores, amotinados, subversivos, desordeiros, criminosos, horda de vândalos, saqueadores.

Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br

Saiba mais

Livros

ASSUNÇÃO, Moacir. São Paulo deve ser destruída. Record, 2015
GUAZZELLI, Eloar. São Paulo em guerra – 1924: baseado em A coluna da morte, de João Cabanas. Unesp, 2012
GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Companhia das Letras, 2009

Reportagem da Rede Câmara SP

Comissão Municipal da Verdade aborda Revolução de 1924

Monografia

SANTOS, Juliana Martins de Oliveira. Entre bombas: cotidiano da cidade de São Paulo durante a Revolução de 1924. Universidade Federal de São Paulo, 2019

Minissérie

Anarquistas graças a Deus. Direção de Walter Avancini. Globoplay. 1984

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