História·Perfil

Defensor das quebradas

Celso Garcia foi o primeiro vereador a se preocupar com moradias populares na periferia
Tempo estimado de leitura: 7 minutos

Texto: Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br

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Celso Garcia foi um vereador militante das causas sociais | Crédito: Reprodução

No início do século 20, São Paulo já era uma metrópole com grandes problemas, principalmente na área de habitação e transporte público. As casas e os bondes eram poucos e custavam muito. Já os cortiços eram muitos e com poucas condições de higiene. Na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), o advogado e jornalista Celso Garcia foi pioneiro ao apresentar um projeto para dar moradia aos mais pobres, principalmente nas áreas mais afastadas do centro, hoje conhecidas como periferias ou quebradas. Na época, Belém, Bom Retiro, Brás e Mooca eram considerados bairros periféricos.

A proposta concedia isenções fiscais à iniciativa privada para a construção de casas operárias higiênicas e previa que o poder público (uma parceria entre os governos municipal e estadual) construísse habitações para os pobres, conta o historiador Philippe Arthur dos Reis em entrevista à Apartes.

“Muitas famílias morando em uma só casa, num quarto, até em num corredor húmido e infecto. Dorme o impudico ao lado da donzela, o ébrio ao lado do velho e da criança.” Celso Garcia

Em discurso feito na CMSP em 29 de julho de 1905, Garcia denunciou que nas ruas eram vistos “estirados, caídos pelas calçadas, numerosos mendigos; estes aleijados, aqueles cegos, aqueles deitados pelo chão, muitos acompanhados de crianças, algumas mal dão os primeiros passos”. 

  Também afirmou ter notado em vários bairros, principalmente no Bom Retiro e no Brás, muitos cortiços, com “muitas famílias morando em uma só casa, num quarto, até num corredor úmido e infecto”. Garcia alertou que “dorme o impudico ao lado da donzela, o ébrio ao lado do velho e da criança” e indagou aos outros vereadores: “O que temos nós feito, que leis temos votado à vista desse triste espetáculo que vão apresentando as ruas de São Paulo?”.

O historiador Reis ressaltou que o projeto também era inovador, pois previa que a Prefeitura realizasse uma grande pesquisa para mapear as condições de vida dos trabalhadores da cidade, como custo de vida, salários, condições de moradia, dentre outros pontos sociais. Para ele, o vereador foi um dos pioneiros a entender que os problemas da capital paulista estavam em diálogo com outras grandes cidades da época, como Buenos Aires, Paris e Nova York.

Mas somente após a morte de Garcia, em 30 de maio de 1908, a proposta, com modificações, foi aprovada e se tornou a Lei 1098, sancionada pelo prefeito interino Raymundo Duprat em 8 de julho de 1908.

VITÓRIA MORAL

Faculdade de Direito

Militância política de Garcia começou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco | Foto: FDUSP

Filho do tabelião Evaristo José Garcia e da auxiliar de cartório Mariana Garcia da Luz, Affonso Celso Garcia da Luz nasceu em Batatais (SP), a 350 km ao norte da capital, em 15 de outubro de 1869. Aos 14 anos, órfão de pai, mudou-se para São Paulo para estudar no Seminário Episcopal. Em 1890, entrou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Como estudante, já demostrava sua militância política, lutando pela defesa da República, proclamada em 1889. Em 21 de janeiro de 1895, Garcia se formou e passou a trabalhar como advogado criminalista. Mas, em paralelo, escrevia para jornais como O Estado de S.Paulo, O Comércio de São Paulo, A Platéa, A Estréa e muitos outros. 

Garcia denunciou o secretário da Justiça e foi agredido por ele e dois capangas na Praça da Sé | Crédito: Reprodução

Um desses textos provocou agressões físicas. Em 7 de maio de 1895, Celso Garcia, no jornal O Democrata Liberal, denunciou que o secretário da Justiça, Teodoro Dias de Carvalho Júnior, usava funcionários públicos como se fossem empregados de sua fazenda. No dia seguinte, na Praça da Sé, o secretário (que tinha sido chefe da Polícia) e dois capangas encontraram o jornalista. Questionado pela autoridade, Garcia confirmou a autoria da denúncia e imediatamente os jagunços o atacaram com socos e o empurraram ao chão. O episódio teve muita repercussão na imprensa. O historiador Pedro Ferraz do Amaral, na biografia Celso Garcia, conta que o secretário da Justiça se deu melhor na disputa física, mas na moral o vencedor foi o jornalista, pois nem os jornais do governo apoiaram Carvalho Júnior.

“São esses humildes que me elevam.” Celso Garcia

Na imprensa, Celso Garcia escrevia sobre greve, economia, violência policial e racismo, entre outras questões. Por exemplo, em 16 de janeiro de 1906, em O Estado de S.Paulo, criticou a proibição de que negros fizessem parte da Guarda Cívica (parte da Força Pública Estadual). Segundo ele, enquanto os negros idosos viviam “esmolando pelas ruas”, “aos mais moços, que não tiveram quem os educasse, nós vedamos o ingresso até nos quarteis”.

Como advogado, conquistou fama por defender, principalmente, os mais pobres. Sua casa, no Brás, estava sempre aberta a quem chegasse. “São esses humildes que me elevam”, disse para a esposa, Maria Luiza, quando ela afirmou que o advogado precisava se socializar mais com juízes, promotores e outras personalidades da área jurídica.

O historiador Pedro Amaral diz, no livro Celso Garcia, que uma vez um banqueiro de jogo do bicho entrou correndo na casa do advogado, perseguido por policiais. Antes de perguntar quem era o contraventor, criticou os agentes por terem invadido sua casa e os expulsou. Depois aceitou defender o bicheiro.

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Arte: Amanda Thiel/CMSP

NA URNA E NA JUSTIÇA

Com tanta popularidade, não teve dificuldades em conseguir 904 votos para ser eleito vereador em 1904. Mas teve de ir à Justiça para conseguir ser empossado. A Comissão Eleitoral, alegando fraude nas atas eleitorais, retirou dezenas votos de Garcia, o que lhe deixava de fora da Câmara. Em 4 de março de 1905, por decisão do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, assumiu o cargo.

Na Câmara, além da questão das moradias populares, Celso Garcia também lutou pela ampliação da rede de bondes para bairros populares, por passagens mais baratas para operários e estudantes, por iluminação pública, por pavimentação de ruas e pelo saneamento básico.

Bonde elétrico

O vereador também lutou para que operários e estudantes pagassem menos nos bondes | Crédito: Guilherme Gaensly/Acervo Fundação Energia e Saneamento

No primeiro semestre de 1907, tentou, sem sucesso, eleger-se deputado estadual. Mas, meses depois, conseguiu ser reeleito vereador. Dessa vez com 490 votos. Logo no início do segundo mandato, em 1º de fevereiro de 1908, na tribuna da Câmara, afirmou que quando estava discursando sobre as casas higiênicas para os operários, percebia que muitos colegas se retiravam. “Neste momento, noto, com prazer, que esses poucos que ficaram foram quase todos reeleitos”, celebrou.

MORTE NO INTERIOR

Afonso Pena

Nas duas vezes em que esteve na CMSP, o presidente Afonso Pena foi saudado por Garcia | Crédito: Portal do Planalto

Celso Garcia tinha fama de ser bom orador. Tanto que nas duas vezes em que o presidente Afonso Pena esteve na Câmara (uma como presidente eleito, outra já empossado), foi o escolhido para saudá-lo.

Na primeira ocasião, em 31 de julho de 1906, Pena estava realizando uma viagem pelo Brasil para conhecer melhor o país que ia governar. Garcia o advertiu que iria encontrar muitos problemas, principalmente na infraestrutura.

Cerca de dois anos depois, em 14 de fevereiro de 1908, o presidente já empossado voltou à CMSP e o vereador se mostrou mais otimista, citando o ressurgimento da Pátria. “Nós, paulistas, mais orgulhosos de sermos brasileiros do que paulistas vemos vossa excelência fortalecendo a nação, atraindo braços e capitais, estendendo linhas férreas, criando ou valorizando riquezas, lança os sólidos fundamentos da grandeza da pátria”, elogiou o parlamentar.

Em maio de 1908, Garcia foi se encontrar com a esposa, que passava uma temporada em São João da Boa Vista (SP), 230 km da capital. Ele já desembarcou do trem com febre. Os médicos diagnosticaram pneumonia dupla e começaram o tratamento. A doença, porém, se agravou e o vereador morreu no dia 30, aos 38 anos.

As homenagens logo começaram. A Câmara se reuniu em sessão extraordinária no mesmo dia e decidiu pagar todas as despesas do funeral, além de contratar um vagão para levar o corpo a São Paulo. O vereador Joaquim Marra se lembrou dos mais necessitados, dos sentimentos “daqueles que mourejam noite e dia sob as dores mais cruciantes da miséria, pois por todos eles o coração bondoso de Celso Garcia latejava e por todos trabalhava”.

O busto de Celso Garcia

O busto de Celso Garcia em praça do Belém é uma das muitas homenagens que a cidade lhe concedeu | Crédito: São Paulo Antiga

Cerca de 500 pessoas foram receber o corpo na Estação da Luz. Autoridades e lideranças populares participaram do enterro, no Cemitério da Consolação. Cerca de 20 agremiações, entre elas, a Sociedade dos Empregados no Comércio, a Associação das Classes Laboriosas e a Sociedade União dos Barbeiros e Cabeleireiros, levaram seus estandartes. Celso Garcia era membro ou presidente honorário de todas.

Um abaixo-assinado de 891 cidadãos chegou à Câmara pedindo que a Avenida da Intendência, na zona leste, passasse a se chamar Celso Garcia. Os vereadores enviaram uma petição ao prefeito Raymundo Duprat e em 5 de junho de 1906 a avenida, onde o político morou até a sua morte, passou a ter o seu nome.

Na Praça Major Guilherme Rudge, no Belém, encontra-se um busto do ex-vereador, com a inscrição “Homenagem de amigos e sociedades operárias”. O historiador Reis lamenta que poucos paulistanos sabem da importância de Celso Garcia: “Foi um grande articulador político, pois conseguia combinar os interesses de operários e dos setores médios em uma Câmara conservadora”.

SAIBA MAIS

Livros

Reis, Philippe Arthur dos. Propostas de habitação para São Paulo: Celso Garcia e os embates na Câmara Municipal. UFPE, 2017.
Amaral, Pedro Ferraz de. Celso Garcia. Livraria Martins Editora, 1973.

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