Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
“Meu pai, além de farmacêutico, era vereador e foi prefeito da cidade”, conta o advogado Paulo Soares Cintra, aos 88 anos, relembrando os primeiros anos de vida na cidade de Pederneiras, conhecida como a Princesinha da Terra Roxa, no oeste paulista. “Do meu pai eu herdei o DNA político”, continua. E acrescenta, rindo: “Feliz ou infelizmente… eu não sei”.
A política esteve sempre presente na casa de Cintra e continuou assim depois que a família se mudou para a capital paulista, quando ele tinha dez anos. Sempre com uma pegada conservadora. “Meu pai assinava O Estado de S. Paulo, que sofria muita influência da UDN [União Democrática Nacional], então minha formação foi ali”, lembra.
Quando o Brasil retomava suas primeiras eleições nacionais após o fim da ditadura do Estado Novo, Cintra passou a frequentar comícios da UDN e encantou-se com o que viu, especialmente com os discursos de Eduardo Gomes, candidato à Presidência em 1945, e do futuro senador Auro Soares de Moura Andrade.
Gostava de ouvir político falar. Ia à Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) e à Assembleia Legislativa para assistir às sessões legislativas. “Eu tinha atração pela política”, afirma. Das galerias da Câmara, que na época ocupava o Palacete Prates, no Vale do Anhangabaú, ficava impressionado com os vereadores Marcos Mélega e Brasil Vita, pela correção e objetividade nas discussões. Dali a alguns anos, haveria de se tornar colega daquelas figuras que admirava.
Formado em Direito pelo Instituto Toledo de Ensino (ITE), em Bauru (SP), cidade vizinha a Pederneiras, conta que trabalhou poucos anos como advogado, antes de entrar definitivamente para a política, ao disputar e vencer sua primeira eleição, em 1963, quando tinha 32 anos. “Abandonei tudo e concentrei toda minha atividade na vida pública.”
“Um começo muito difícil”
Eleito vereador com 3.842 votos, pelo Partido Libertador (PL), aliado da UDN, instalou-se numa sala do Prates, junto com outros dois vereadores. No Palacete, “um prédio muito bonito”, porém pequeno, não havia espaço para que os vereadores tivessem gabinetes individuais. Era comum um vereador se ver no meio de uma conversa com um grupo de pessoas que o procuravam e ao mesmo tempo ser interrompido pela chegada na sala de outro grupo também querendo falar com ele. “Havia uma certa balbúrdia e tirava a privacidade”, recorda-se.
O golpe de 1964, que derrubou o governo eleito de João Goulart e instaurou uma ditadura militar que duraria 21 anos, dificultou a vida dos vereadores, mesmo a dos mais conservadores, como Cintra. “Com a revolução de 64, os políticos sofreram muito”, diz.
“Houve muitas prisões de vereadores e, de vez em quando, a gente reparava que havia um militar dentro da sessão da Câmara. Mesmo que não dissesse nada, isso era uma pressão”, acrescenta. A solução, segundo ele, foi a criação de um “pacto implícito” entre os parlamentares de todas as correntes políticas: “A Câmara se defendia e defendia todos os vereadores. Nunca aconteceu um fato mais grave”.
A pior consequência que a ditadura trouxe para Cintra foi a missão espinhosa que recebeu, em maio de 1964, de presidir uma comissão encarregada de investigar funcionários da própria CMSP, atendendo a uma determinação do Ato Institucional nº 1, baixado um mês antes pelo governo militar, que previa a possibilidade de exoneração para servidores que tivessem “tentado contra a segurança do País, o regime democrático e a probidade da administração pública”. Em outras palavras, como diz Cintra, era uma comissão para “julgar os funcionários que a revolução considerava ‘perigosos’”.
A Comissão de Investigação da Câmara Municipal era presidida por Cintra e contava também com o diretor-geral da Casa, Elias Shammass, e com o chefe da Assessoria Técnico Legislativa, Asdrúbal Ferreira de Freitas. Investigou no total 14 servidores, em três processos diferentes. Os militares, lembra Cintra, pressionavam por uma condenação, mesmo que não houvesse provas contra os funcionários. A maior parte dos nomes “suspeitos” era fornecida pelo secretário estadual de Segurança Pública, general Aldévio Barbosa Lemos, a partir do cruzamento entre os nomes de servidores da Câmara e uma lista de suspeitos de “subversão e conspiração contra o regime” que constava dos arquivos do Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops), um dos braços da polícia política daqueles anos.
A ditadura, contudo, não tinha nada de concreto contra os servidores. Alguns haviam sido indicados pelos militares à Comissão de Investigação por engano, apenas porque tinham o mesmo nome de outras pessoas que constavam nos arquivos do Deops. Outros haviam sido fichados “por motivos vagos ou que em nada se confundiam com subversão ou atentado contra o governo militar”, conforme descreve o relatório a Comissão da Memória e Verdade da Prefeitura de São Paulo, que analisou as perseguições realizadas pelo regime militar na capital paulista. Um dos funcionários, por exemplo, entrou para os arquivos do Deops apenas por “ter comparecido, em 1946, a um comício promovido por um sindicato de trabalhadores agropecuários”.
“Para mim, com 32 anos, no começo do meu primeiro mandato, foi tudo muito difícil. As pressões foram muito fortes”, relembra Cintra. Mas a Comissão resistiu às pressões. Em maio de 1965, arquivou todos os processos. Mesmo com os percalços, Cintra não guarda mágoas dos militares. “Apesar de saber que estávamos sendo vigiados, tínhamos um contato harmonioso e educado com a revolução”, diz.
Proposta indecente
“O político está sempre atento”, sentencia Cintra, com a autoridade de quem, como diz, carrega a política nos genes. Um dos projetos de lei que criou, por exemplo, nasceu em um domingo de 1965, quando estava em casa, vendo pela TV um jogo entre Corinthians e Santos.
O jogo acabou interrompido por uma briga entre os torcedores. Na tela, Cintra viu alguém atirar uma garrafa de vidro vazia e uma criança cair no chão, ensanguentada. “Vi ali uma oportunidade de apresentar um projeto de lei para coibir essas violências”, explica. No dia seguinte, segundo ele, apresentou o projeto de lei 457/1965, que restringia a venda de bebidas em garrafas de vidro nos estádios.
"Se ele vier me fazer qualquer proposta, vou ter que chamar a polícia da Câmara e tirá-lo daqui" Paulo Soares Cintra
Bem acolhido pela maioria de seus colegas e pelos jornalistas, o projeto enfrentou resistências dos concessionários de serviços nos estádios, que achavam a ideia “um absurdo”. Um dos parlamentares, cujo nome Cintra prefere não dizer, sugeriu um encontro com um irmão dele, que trabalhava como advogado de uma dessas empresas. “Iam me oferecer o que eu quisesse para retirar o projeto, ou pelo menos para deixar o projeto morrer”, lembra. Como projetos morrem? “Isso não é muito difícil. É só deixar numa comissão técnica, pedir vistas e com o tempo as coisas vão passando”, explica.
Cintra nunca aceitou ao menos falar com o irmão do vereador que pretendia lhe propor suborno. “Se ele vier me fazer qualquer proposta, vou ter que chamar a polícia da Câmara e tirá-lo daqui”, teria dito ao colega. Depois de todos os percalços, o projeto foi aprovado, mas acabou vetado pelo prefeito Faria Lima.
Outro projeto de que Cintra se orgulha criava uma campanha educativa de arborização da cidade. Esse saiu do papel e virou a lei 6.620/1964. “Plantamos milhares de árvores em São Paulo graças a essa campanha”, conta. Para ele, é uma prática que todos os prefeitos poderiam adotar: “Isso forma e orienta a criança”.
Quando a ditadura extinguiu todos os partidos, em 1966, e criou dois, a Aliança Renovadora Nacional (Arena), de apoio ao governo, e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB), de oposição consentida ao regime, Cintra escolheu se filiar ao segundo. Dois anos depois, porém, quando se reelegeu vereador, com 23.545 votos, já estava na governista Arena. A mudança, segundo ele, atendia a um pedido do aliado Faria Lima.
Foi a pedido de Faria Lima, prefeito de São Paulo entre 1965 e 1969, que se licenciou do cargo de vereador e assumiu a Secretaria de Bem-Estar Social. Entre as medidas que coordenou como secretário, esteve a implantação das primeiras 16 creches municipais, geridas por entidades assistenciais.
Quando voltou para o cargo, a Câmara Municipal estava em outro endereço, no recém-inaugurado Palácio Anchieta, onde cada vereador tinha direito a um gabinete individual, o que achou muito mais cômodo. Seus colegas o elegeram presidente para o período de 1971 e 1972.
A relação com o Executivo, segundo Cintra, era de parceria. Com Figueiredo Ferraz, prefeito biônico (não eleito, nomeado pelo governador) entre 1971 e 1973, relata que os vereadores se reuniam todas às terças-feiras, em seu gabinete, para discutir os projetos que o Executivo pretendia enviar. “Quando o projeto ia para a Câmara, já estava praticamente aprovado”, diz Cintra, que se orgulha de ter facilitado a vida do prefeito no período em que presidiu a CMSP. “Quando fui presidente, foram apresentados 137 projetos e foram aprovados 135.”
Linha do Tempo
Perto da população
Da sua atuação de dois anos como presidente da CMSP, Cintra se orgulha de ter organizado uma série de dez seminários, abertos à população, sobre temas variados da cidade, como saúde, educação, transporte, abastecimento, educação física, esportes. “Foi altamente enriquecedor, porque trouxemos o que havia de melhor no Brasil.” O objetivo era aproximar a população da Casa. “Fala-se muito que o Legislativo é a casa do povo, mas não é. O povo entra muito pouco”, critica.
Os eventos que organizou, na sua visão, teriam conseguido trazer o povo para dentro da Câmara. Conta que, num seminário sobre a questão das inundações, o prefeito Figueiredo Ferraz fez uma fala muito correta, do ponto de vista técnico, explicando num quadro-negro as causas das cheias que já assolavam o Município, mas acabou surpreendido ao ser contestado por “uma senhora de chinelos e pano na cabeça”, que lhe disse: “senhor prefeito, eu não entendi muita coisa, mas o senhor falou bonito, eu só queria que o senhor me contasse agora: na última enchente eu perdi tudo e quem é que vai pagar isso para mim?”. Embora admirador de Ferraz, Cintra gostou do que viu. “Isso desmontou o prefeito. Era exatamente o que a gente queria”, afirma. Para ele, “a Câmara deveria ser o laboratório de estudos dos problemas da cidade”.
Após encerrar seu segundo mandato, em 1972, continuou a atuar como advogado e político (veja linha do tempo). De tudo o que fez, uma das atividades que trata com mais carinho é sua atuação na Associação Evangélica Beneficente (AEB), ONG criada em 1928 para atender pessoas em situação de vulnerabilidade nas áreas de educação, saúde e assistência social, com a qual colabora desde 1950.
Na AEB, Cintra já foi presidente por duas vezes e hoje é membro de honra do Conselho. Entre os projetos geridos pela associação, estão quatro creches da cidade de São Paulo, algumas daquelas que Cintra criou em 1969, quando era secretário da Prefeitura. Até hoje, pai de três filhos e avô de três netas, continua a trabalhar na AEB. “Sou só um colaborador”, diz, com simplicidade. Os colegas, porém, fazem questão de dizer: “ele trabalha aqui todos os dias”. Aos 88 anos.