História

Ê, camarás! De marginais a heróis

São Paulo cria a Casa da Capoeira para incentivar a dança-luta (ou luta-dança) que já foi proibida
Tempo estimado de leitura: 7 minutos

Rodrigo Garcia rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

O motorista de ônibus aposentado Carlos Alberto Tavares, de 71 anos, está animado. Em instantes, vai começar a aula de afromix, atividade física que une elementos da capoeira e de outras danças. “A gente se sente bem e pode até comer à vontade que não engorda”, diz o aluno, que participa regularmente da atividade.

Já Márcia Valeska conta que seus alunos, e ela mesma, saem com mais disposição das aulas de afromix e de capoeira. “Todo mundo pode fazer”, garante a professora, que gostaria de ver mais mulheres e crianças jogando capoeira, sendo “camarás”, como os praticantes também são conhecidos.

“A mãe Capoeira precisava de um local, ela é a mãe de todos nós”, comemora mestre Tico, coordenador da Casa | Crédito: Marcelo Ximenez/CMSP

Tanto a afromix quanto a capoeira são atividades disponíveis na Casa da Capoeira de Campo Belo, inaugurada pela Prefeitura de São Paulo em dezembro do ano passado, no Parque Invernada, na zona sul. No espaço também há aulas de maculelê e de artesanato afrobrasileiro, além de festas. Todas as atividades são gratuitas. A inscrição pode ser feita na hora.

A Casa da Capoeira, administrada pela Secretaria Municipal de Esportes e Lazer, é um galpão com um palco, cadeiras e, principalmente, muito espaço para as atividades. Na frente, fica um pátio onde também se pode jogar capoeira. A entrada chama a atenção por homenagear o berimbau, instrumento musical muito usado para dar ritmo aos movimentos.

“A mãe Capoeira precisava de um local, ela é a mãe de todos nós”, diz Adenilson Silva Alves, o mestre Tico, coordenador da Casa. “Agora os capoeiristas podem ir embora, mas a Casa da Capoeira fica”, comemora. Alves pretende organizar no local encontros com capoeiristas do mundo todo. “Isto aqui já é um sucesso”, garante.

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A entrada da Casa da Capoeira, que remete a um berimbau | Crédito: Prefeitura da Cidade de São Paulo

A Casa da Capoeira foi criada para divulgar e valorizar a prática da dança, com o objetivo de “formar indivíduos aptos a disseminar a importância histórica dessa expressão cultural que mistura luta, dança, cultura popular e a música”, segundo a lei 17.588, aprovada em 2021 pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP).

Na lei, também consta que “o acervo da Casa da Capoeira será composto dos mais diversos materiais relativos à produção de peças, pesquisas, criação e produção de objetos relativos à modalidade, objetos históricos, artísticos, fotográficos, gastronômicos, e qualquer forma de expressão que contribua para a preservação da capoeira”.

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Aula de afromix: todas as atividades da Casa da Capoeira são gratuitas | Crédito: Marcelo Ximenez/CMSP

Na justificativa do projeto que deu origem ao espaço, os vereadores Dr. Sidney Cruz (Solidariedade), Elaine do Quilombo Periférico (PSOL), Faria de Sá (PP), Felipe Becari (PSD) e Marcelo Messias (MDB) afirmam que “diante de uma história de resistência e luta e do importante reconhecimento que a modalidade alcançou, faz-se necessária a criação da Casa que abrigará e imortalizará todo um legado deste povo guerreiro e vencedor”.

Messias conta que apoiou a ideia da Casa por causa da importância da capoeira, principalmente para os jovens. “Ensina disciplina e respeito aos mais velhos, além de fazer parte da cultura brasileira”, diz o vereador à Apartes. Ele se lembra que na juventude, quando morava na Capela do Socorro, zona sul da cidade, via os vizinhos jogando capoeira, queria participar do jogo, mas não podia porque tinha de trabalhar. “Agora a juventude tem um local para praticar a capoeira”, comemora.

O projeto foi apresentado incialmente em 2020 pelo então vereador Ricardo Nunes (MDB), atual prefeito de São Paulo. No ano seguinte, os cinco parlamentares reapresentaram a proposta.

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A professora Márcia joga com o marido, mestre Tico, e sonha com mais mulheres e crianças na capoeira | Crédito: Marcelo Ximenez/CMSP

LUTA HISTÓRICA

A capoeira foi criada pelos negros escravizados como uma forma de resistência. O mestre capoeirista Anande das Areias, em seu livro O que é capoeira, definiu a atividade como “música, poesia, festa, brincadeira, diversão e, acima de tudo, uma forma de luta, manifestação do povo, do oprimido e do homem em geral para sobreviver e lutar contra qualquer tipo de opressão”.

O motorista aposentado Tavares: “A gente se sente bem e pode até comer à vontade que não engorda” | Crédito: Marcelo Ximenez/CMSP

O mestre explica a origem da luta: os negros escravizados se inspiraram na natureza, nas brigas dos bichos, em que usavam cabeçadas, coices, saltos e botes. Além disso, foram utilizadas as estruturas das manifestações culturais (brincadeiras e competições) trazidas da região de Angola, no Oeste da África, onde eram praticadas em cerimônias religiosas. Assim, criaram a luta nos séculos 17 e 18.

Segundo historiadores, provavelmente o nome originou-se porque a atividade era praticada na capoeira, palavra de origem tupi que designa a vegetação de arbustos surgida após a derrubada da mata original. Existe também a hipótese de que a origem da palavra tenha sido um cesto que os negros escravizados carregavam na cabeça.

As primeiras imagens conhecidas da capoeira são do começo do século 19. Por volta de 1825, o inglês Augustus Earle pintou a aquarela Negros lutando. Na obra, um policial se aproxima para acabar com a briga. Na mesma época, o alemão Johann Moritz Rugendas fez a gravura Jogar capoeira – dança da guerra. Nela a cena é mais festiva, com homens e mulheres tocando instrumentos e batendo palmas enquanto observam os capoeiristas.

Na cidade de São Paulo, desde o século 19 há registros da prática. E da repressão das autoridades aos capoeiristas. O historiador Pedro Figueiredo Alves da Cunha, em seu livro Capoeiras e valentões na história de São Paulo, conta que, em 1829, um estudante, que preferiu não se identificar, enviou uma carta ao jornal O Farol Paulistano acusando o professor de francês Augusto da Silveira Pinto de “jogar capoeira no Largo do Chafariz, servindo de espetáculo aos negros, que quando o veem dar bem uma cabeçada, o aplaudem com bastantes assobios, palmas e gargalhadas”.

A capoeira é "música, poesia, festa, brincadeira, diversão e, acima de tudo, uma forma de luta, manifestação do povo, do oprimido e do homem em geral para sobreviver e lutar contra qualquer tipo de opressão” Mestre Anande das Areias

Segundo Cunha, os conflitos entre os capoeiras (como também eram chamados os capoeiristas), muitas vezes com navalhas, e o receio de que os negros escravizados se rebelassem levaram o presidente da Província de São Paulo, Rafael Tobias de Aguiar, a solicitar que a Câmara de Vereadores da capital tomasse providências para coibir que os negros escravizados praticassem “o jogo vulgarmente chamado capoeira quando vão às fontes e a outros lugares em que se costumam ajuntar”. Segundo o presidente, isso dava origem a “muitas desordens entre gente tão bárbara e imorigerada” (devassa).

Assim, em 14 de janeiro de 1833, os parlamentares estabeleceram uma norma: “toda pessoa que, nas praças, ruas ou em qualquer lugar público, praticar o jogo denominado ‘de capoeiras’, ou de qualquer outro gênero de luta, sendo livre será presa por três dias e pagará a multa de 1 a 3 mil réis”. No caso de cativos, a determinação era prisão por 24 horas e pena de 25 a 50 açoites.

Apesar da perseguição, a capoeira ganhava praticantes em São Paulo. E não só entre os negros. Cunha relata que, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, estudantes que depois se tornariam políticos e juízes treinavam a luta, equiparando-a ao boxe inglês.

Aulas de capoeira e de afromix são atividades da Casa

“PERIGOSO ESPORTE”

A chegada da República, em 1889, não mudou a perseguição aos capoeiristas. O primeiro Código Penal do Brasil republicano, de 1890, determinava a prisão de dois a seis meses para quem fizesse “nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem”. A lei ressaltava que era circunstância agravante pertencer o capoeira a alguma “banda ou malta” (quadrilha, na linguagem atual) e que para os chefes a pena seria em dobro.

Mas a dança-luta continuava vencendo brigas. Em 1908, o jornal Correio Paulistano já considerava a capoeira “um esporte”, mas com uma ressalva: “um perigoso esporte”.

Com o passar do tempo, a perseguição foi diminuindo. No Código Penal seguinte, de 1940, a capoeira não era mais considerada crime. Em 1953, o presidente do Brasil na época, Getúlio Vargas, assistiu em Salvador (BA) a uma apresentação do mestre Bimba, foi fotografado com os capoeiristas e declarou: “A capoeira é o único esporte verdadeiramente nacional”.

Desde a década de 20, Manuel dos Reis Machado, o mestre Bimba, esforçava-se para tirar a capoeira da marginalidade. Em 1932, fundou em Salvador a primeira academia da luta no Brasil: a  Academia-Escola de Cultura Regional. O nome capoeira ainda não podia aparecer. Com a foto de Vargas, o jogo ganhou mais força e prestígio.

Mestre Bimba e o presidente Getúlio Vargas | Reprodução

O reconhecimento da importância da capoeira veio no âmbito municipal, nacional e até internacional. Em 1985, a CMSP instituiu o Dia do Capoeirista, celebrado em 3 de agosto. Em 2008, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) declarou a roda de capoeira um bem cultural. Seis anos depois, em 2014, foi a agência da ONU para Educação, Ciência e Cultura (Unesco) que estabeleceu a roda de capoeira como patrimônio imaterial da humanidade por representar “a resistência negra no Brasil durante a escravidão”.

Atualmente, a capoeira é praticada nas rodas de São Paulo e de outras cidades em cerca de 150 países, dando rabos de arraia e rasteiras no preconceito. Salve, camarás!

Edição: Sândor Vasconcelos sandor@saopaulo.sp.leg.br

SAIBA MAIS

Serviço

Casa da Capoeira
Rua Sapoti, 20 – Campo Belo
Aulas de:
– Capoeira (terças e quintas, às 10h30 e às 19h)
– Afromix (segundas, às 19h)

Todas as atividades da Casa são gratuitas

As inscrições podem ser feitas na hora

Instagram:
@casadacapoeirasp

Livros

CUNHA, Pedro Figueiredo Alves da. Capoeiras e valentões na história de São Paulo. Alameda, 2013.

AREIAS, Anande das. O que é capoeira. Editora da Tribo, 1998.

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