Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Em maio de 1962, quando o Brasil passava por mais uma crise política (o presidente João Goulart sofria muitas pressões, principalmente dos militares), o vice-prefeito de São Paulo, Freitas Nobre, foi visitar o médium Chico Xavier em Uberaba (MG). Lá ouviu que seria chamado a atuar em época muito difícil para País, com risco até de derramamento de sangue, e que iria desempenhar um papel importante na pacificação do Brasil. A profecia se concretizou. Anos depois, foi um dos principais líderes da luta pela redemocratização, combatendo a ditadura militar imposta com o golpe de 1964.
“A liberdade é insubstituível e por ela devemos estar todos, sem exceção, ligados de forma permanente."
Quem testemunhou o encontro foi Marlene Rossi Severino, ajudante de Chico Xavier que dois anos depois se casaria com o político. O médium disse que “o Brasil penderia fortemente para a esquerda, depois para a direita, e que, finalmente, iria para o centro”, contou ela em entrevista ao blog de Ismael Gobbo em 2010.
A carreira de José Freitas Nobre, que também foi jornalista, escritor, vereador e deputado federal, começou em Fortaleza (CE), onde nasceu em 24 de março de 1921, filho de Manuel Aprígio Nobre e de Letícia Freitas Nobre. Ainda adolescente, escreveu um livro-reportagem que obteve boas críticas, A epopeia acreana.
Aos 15 anos, mudou-se para São Paulo, onde passou a trabalhar em jornais e revistas. Nobre também estudou Direito e se formou na Universidade de São Paulo (USP) em 1948. Ainda estudante, concorreu e venceu sua primeira eleição. “Nos bancos da velha Academia do Largo de São Francisco, dividindo o meu tempo entre o estudo e a mesa da redação, senti a primeira prova desse espírito superior do paulistano: um cearense recém-chegado escolhido o primeiro orador oficial do Centro Acadêmico XI de Agosto”, lembrou décadas depois.
Sua liderança na luta por melhores condições de trabalho para os jornalistas e pela liberdade de imprensa o levou à presidência do Sindicato dos Jornalistas do Estado de São Paulo, em 1949, e foi eleito presidente da Federação Nacional dos Jornalistas em 1953.
PARLAMENTOS
O sindicalista resolveu levar para o Parlamento municipal a luta por melhores condições de vida para os trabalhadores. Candidato a vereador em 1950, só obteve a primeira suplência, mas assumiu a vaga em diversas ocasiões, com as licenças do titular Antônio de Cillo Netto. Freitas Nobre foi eleito em 1955 e reeleito em 1959.
Na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), preocupou-se com questões como alta dos preços, imigrantes nordestinos, crianças abandonadas nas ruas. Em 1956, disse que testemunhou “crianças esmolando; crianças descalças; crianças preparando-se para as atividades criminosas do dia de amanhã, porque os delinquentes preparam-se justamente nessa fase de formação moral que é quando a criança se vê abandonada”, afirmou na tribuna da Casa em 1956. E concluiu: “As crianças exigem um pouco mais de juízo das crianças-grandes que têm os destinos de nossa terra em suas mãos”.
Houve ocasiões em que Freitas Nobre não poupou nem seus colegas. Em 1958, criticou os vereadores por terem ficado ao lado da Prefeitura quando ocorreu um aumento do preço da passagem dos ônibus, que provocou protestos violentos. “O que mais me envergonha e me deprime é a insensibilidade desta Câmara, que pela sua maioria, servil e subserviente, transformou-se num apêndice do Ibirapuera (onde se localizava a sede da Prefeitura)”, disparou. “Não lhe comove a angústia popular, nem a ira da massa, enfurecida pelo assalto praticado à madrugada, na penumbra em que se acobertam os mais perigosos delinquentes.”
Em 1961, o vereador foi eleito vice-prefeito de São Paulo, na eleição em que Prestes Maia ganhou a Prefeitura pela segunda vez. Na época, os eleitores votavam separadamente no prefeito e no vice, mesmo que estivessem em chapas diferentes. Maia, da coligação UDN/PDC/PTB, obteve 462.635 votos. Nobre, do PSB, 222.769 votos.
Logo após a eleição, informou que iria se licenciar do cargo de vereador para se dedicar totalmente aos problemas da cidade. Quando indagado por jornalistas quais seriam seus planos para a Vice-Prefeitura, declarou que seria “um fiscal do povo que o elegeu”. E ressaltou, reconhecendo a boa reputação de homem público de Prestes Maia: “Aliás, a tarefa não me parece árdua, de vez que o prefeito eleito é já um bom fiscal de si mesmo”.
Em maio de 1964, já fora da Vice-Prefeitura, casou-se com a médica e propagadora da doutrina espírita Marlene Rossi Severino, poucas semanas depois do golpe de 31 de março de 1964. Os tempos difíceis previstos por Chico Xavier haviam chegado. “Foram muitos os sobressaltos sempre na expectativa da cassação dos direitos políticos dele, o que nunca se concretizou, acreditamos, por interferência do plano espiritual”, disse Marlene na entrevista de 2010.
O casal foi para Paris em 1966, onde Freitas Nobre fez um doutorado em Direito e Economia da Informação pela Universidade de Paris (Sorbonne) uma das mais conceituadas do mundo. De volta ao País em 1968, foi eleito novamente para a CMSP e, dois anos depois, para a Câmara dos Deputados pelo MDB, partido que fazia oposição à ditadura. Foi reeleito deputado federal três vezes.
Em Brasília, destacou-se por seus discursos em defesa dos direitos humanos, da liberdade de imprensa, da independência do Poder Legislativo, enfim, da democracia.
ESTRATEGISTA-MOR
Bom articulador político, o que lhe permitia dialogar com todas as correntes do MDB, em 1977 foi escolhido para ser o líder da oposição e conseguiu impor derrotas ao governo federal, como em um projeto de reforma do Poder Judiciário, que era de interesse do Palácio do Planalto.
Com discursos enfáticos e bem embasados, analisava a situação do País, criticava a ditadura e propunha soluções. “Não queremos o Congresso como poder cartorial homologatório, um subpoder, mas, igualmente, soberano e livre, como devem ser os demais poderes, porque sem essa soberania pode existir tudo, tudo menos democracia”, afirmou na tribuna da Câmara dos Deputados em 1980, quando o País ainda estava sob o regime militar.
Algumas das frases de Nobre parecem ter sido ditas sobre o Brasil atual. “É a dignidade do Legislativo que está em jogo, em razão da forma coativa com que o Executivo age, dando exemplos claros e indisfarçáveis dessa ação autoritária e algumas vezes corruptora”, alertou em 1979.
Na campanha das Diretas Já, quando em 1984 multidões foram às ruas em comícios e passeatas pedindo a volta das eleições diretas para presidente, exerceu um papel estratégico, sendo considerado o “estrategista-mor das Diretas”. O jornalista Ricardo Kotscho, que testemunhou a participação de Freitas Nobre nos eventos da campanha, ficou impressionado com a vitalidade do político de 61 anos. Às 6h da manhã, ligava para o deputado federal Ulisses Guimarães, presidente do PMDB, para irem à praia ou piscina. “Sempre iam dormir tarde nas viagens, mas Freitas tem mania de vida saudável, ginástica, ar puro, essas coisas”, escreveu Kotscho no livro Explode um novo Brasil – Diário da Campanha das Diretas.
“Está muito em moda confundir democracia com populismo, enquanto o povo sente o cinto que aperta, pois só engordam os que estão satisfeitos com o regime.”
Em 1986, Nobre concorreu mais uma vez à Câmara dos Deputados, que iria escrever a nova Constituição do Brasil. Por uma ironia da história, o político que durante anos defendeu a convocação de uma Assembleia Constituinte não foi eleito justamente quando foi criada. Quatro anos depois, tentou novamente ser deputado federal e não conseguiu.
Em paralelo à vida política, Freitas Nobre sempre manteve uma militância kardecista, seguindo a doutrina do médico francês Allan Kardec. Fazia palestras e escrevia livros doutrinários, como O transplante de órgãos à luz do Espiritismo, A perseguição policial contra Eurípedes Barsanulfo e O crime, a psicografia e os transplantes, além de organizar os textos do médico Bezerra de Menezes.
Em 1974, com o apoio do amigo Chico Xavier, funda o jornal Folha Espírita, o primeiro a ser vendido nas bancas de jornais do Brasil. Durante 16 anos, Freitas Nobre foi editor e diretor do jornal. “Acima de tudo, é um espírita convicto”, definiu Kotscho.
PASSAGEM
Em novembro de 1990, Nobre foi hospitalizado com problemas pulmonares. No dia 19, morreu de insuficiência respiratória aguda. O então presidente da Câmara dos Deputados, Paes de Andrade, disse que na véspera tinha escutado do político: “Estou preparado para a longa viagem, para a longa caminhada”. O corpo foi velado no Palácio Anchieta, sede da CMSP, e sepultado no Cemitério do Araçá.
Na sessão do dia seguinte à morte, vereadores de diversos partidos lamentaram e lembraram a história do político. O vereador Eduardo Suplicy (PT), na época presidente da Câmara, contou que Nobre o incentivou, em 1977, a se filiar ao MDB e ser candidato a deputado estadual no ano seguinte.
O vereador Wálter Abrahão (PDS) disse que se lembrava das muitas vezes que o encontrou nas ruas da Liberdade, “sempre naquele seu estilo humilde, simples, quase no anonimato, atendendo a todos na rua e frequentando o mesmo barbeiro há mais de 40 anos”. E completou: “Quando me encontrava com ele, dizia: ‘Você, Freitas, é Nobre até no nome’”.
Após a morte, foram feitas muitas homenagens ao político na cidade de São Paulo. Tornou-se nome de uma escola no Capão Redondo, uma praça no Morumbi, de um auditório no Palácio Anchieta e até de aeroporto. Desde 2017, o Aeroporto de Congonhas se chama São Paulo/Congonhas – Deputado Freitas Nobre. O então deputado federal João Bittar (MG), que propôs a mudança, justificou que o local era “a casa” de Nobre: “De lá, decolava semanalmente rumo a vários destinos do País com o objetivo de unir o povo brasileiro e, juntos, redemocratizarem a nossa nação”.
Mas foi em vida que Freitas Nobre recebeu um dos mais belos reconhecimentos, uma música de Adoniran Barbosa. O jornalista Geraldo Gattolini revelou a um dos filhos do político, Marcos Nobre, que em 1975 o compositor soube que o deputado dava dinheiro aos migrantes recém-chegados a São Paulo para que comprassem uma cadeira de engraxate e tivessem um trabalho. Antes de compor a música falou com Nobre, que pediu que seu sobrenome não estivesse na letra. Assim, na música Vide verso meu endereço, o benfeitor é chamado apenas de “dr. José”.
Em um dos trechos, Adoniran canta:
Venho por meio destas mal traçadas linhas
Comunicar-lhe que fiz um samba pra você
No qual quero expressar toda a minha gratidão
E agradecer de coração tudo o que você me fez.
O dinheiro que um dia você me deu
Comprei uma cadeira lá na Praça da Bandeira
Ali vou me defendendo
Pegando firme dá pra tirar mais de mil por mês.
Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br
SAIBA MAIS
Site
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil – Fundação Getulio Vargas. cpdoc.fgv.br
Livros
NOBRE, Freitas. Discursos como líder da oposição. Câmara dos Deputados, 1981.
SCHWARTZ, Rosana (org). 2ª Legislatura (1952-1955): o IV Centenário. Câmara Municipal de São Paulo, 2017.
SCHWARTZ, Rosana (org). 3ª Legislatura (1956-1959): História de São Paulo e sua Câmara Municipal. Câmara Municipal de São Paulo, 2017.