Texto: Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
“Eu creio que é difícil ser negro e ser intelectual no Brasil. É difícil ser negro porque, fora das situações de evidência, o cotidiano é sempre muito pesado para os negros. É difícil ser intelectual porque não faz parte da cultura nacional ouvir tranquilamente uma palavra crítica”, respondeu o geógrafo Milton Almeida dos Santos, para o documentário Encontro com Milton Santos: O mundo global visto do lado de cá, ao ser perguntado pelo diretor Silvio Tendler se era difícil ser um intelectual negro no Brasil.
Quando deu essa entrevista, Milton Santos já era um nome consagrado como o maior geógrafo brasileiro e um dos mais importantes cientistas e pensadores da história do Brasil. Apesar disso, ele se via como uma voz isolada no cenário da intelectualidade nacional. “Eu me considero um intelectual outsider, coisa que é rara no Brasil. Não pertenço a nenhum partido, a nenhum grupo, inclusive de intelectuais, não respondo a nenhum credo, não participo de nenhuma militância”, era como se definia.
Estar sozinho, na visão de Santos, não era um empecilho, mas uma obrigação para quem quisesse exercer o ofício de pensar e teria, na sua visão, o dever de incomodar. “O intelectual existe para criar o desconforto”, definiu, em entrevista ao programa Roda Viva, da TV Cultura, em 1997, numa época em que o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, era um conhecido intelectual. Para Santos, contudo, um verdadeiro intelectual nunca poderia se misturar com o poder estabelecido.
O intelectual existe para criar o desconforto Milton Santos
“A intelectualidade brasileira é formada em grande parte por pessoas que preferem ser establishment a ser intelectuais. Eu não posso ser ao mesmo tempo intelectual e establishment. Quando os intelectuais decidem ser establishment, eles abandonam a sua capacidade crítica, sua vontade crítica, e traem sua missão”, apontou, no mesmo programa, fazendo uso do suave tom professoral e do sorriso que acompanhavam mesmo as suas críticas mais duras.
Foi um compromisso que Milton Santos manteve por toda a sua longa trajetória acadêmica, que incluiu a atividade como professor em universidades no Brasil, França, EUA e Canadá, a publicação de mais de 40 livros, em diversos idiomas, e o reconhecimento do Prêmio Vautrin Lud, conhecido como “o Nobel da Geografia”. A Câmara Municipal de São Paulo também homenageou o mestre ao criar em 2002, um ano após sua morte, o Prêmio Milton Santos.
Um geógrafo formado em Direito
Milton Almeida dos Santos nasceu na pequena cidade de Brotas de Macaúba, na região da Chapada Diamantina, no interior da Bahia, em 3 de maio de 1926. Neto de escravos e filho de professores, foi alfabetizado em casa. Como seus pais, abraçou muito cedo a atividade de educador, que o acompanharia ao longo de toda a vida. Começou aos 15 anos, dando aulas no mesmo colégio interno onde estudava e vivia, o Instituto Baiano de Ensino, quando já morava em Salvador.
A família mudou várias vezes de cidade na infância de Santos, um movimento que marcou o menino e influenciaria na escolha, décadas depois, no seu interesse pela Geografia. “O que despertou minha vontade de ser geógrafo, na realidade, era que eu ficava intrigado com o movimento. Por que é que os trens correm de um lado para o outro, os automóveis, as pessoas? Essa foi minha primeira curiosidade”, relatou ao jornalista Fernando Conceição, autor de Milton Santos, uma biografia.
A ciência, contudo, demorou para fazer parte da vida de Santos. O maior geógrafo do Brasil, curiosamente, formou-se em Direito, atendendo a um pedido de seus pais: “Minha família decidiu me educar para ser um dos homens de mando”.
Graduado em 1948 na Faculdade de Direito de Salvador, nunca atuou como advogado. No mesmo ano, publicou seu primeiro livro, sobre o povoamento da Bahia. O livro era fruto de um texto que havia submetido para um concurso público para professor de Geografia do Brasil no Instituto Municipal de Ensino, em Ilhéus (BA), no qual foi aprovado.
No colégio de Ilhéus, o professor de Geografia se apaixonou por uma aluna, Jandira Martins Rocha, três anos mais nova. Os dois se casaram em 1952. Três anos depois, tiveram um filho, que recebeu o mesmo nome do pai.
A carreira acadêmica de Milton Santos teve início em 1954, como professor de Geografia Humana da Universidade Católica de Salvador. A partir de um convite, deixou o País para um doutorado na área pela Universidade de Estrasburgo, na França, concluído em 1958. De volta ao Brasil, tornou-se professor livre-docente pela Universidade Federal da Bahia, em 1960. Suas pesquisas voltavam-se para as realidades locais da Bahia, como o centro de Salvador e as cidades do Recôncavo.
Com a Bahia que lhe deu régua e compasso, Milton Santos por essa época assumia várias atividades diferentes, correndo paralelas ao ofício de professor e pesquisador. Foi editorialista e articulista do jornal A Tarde e ainda arrumou tempo para atuar como gestor público: foi diretor da Imprensa Oficial baiana, representante da Presidência da República no Estado e presidente da Comissão de Planejamento Econômico do governo estadual. Nesta função, em 1963, apresentou uma série de propostas socialmente avançadas, como a criação de um imposto para grandes fortunas numa época em que os Estados tinham autonomia para tanto.
Não é fácil ser negro e intelectual no Brasil Milton Santos
Eram propostas que viriam a adquirir um jeito “subversivo” aos olhos da ditadura militar que chegaria ao poder no ano seguinte, após um golpe de Estado. Mal visto pelo novo regime, Santos acabou detido, acusado de “atentar contra a segurança nacional”, e aprisionado em um quartel localizado em uma região de mata fechada na periferia de Salvador. Lá, em junho de 1964, o professor sofreu o início de um acidente vascular cerebral (AVC), que paralisou os músculos de um dos lados de seu rosto.
Após deixar o hospital, os militares o autorizaram a voltar para casa. Mas ele sabia que não poderia viver sob uma ditadura. Foi quando recebeu convites para trabalhar no exterior. O governo militar, contudo, recusou-se a permitir sua saída. Santos só conseguiu autorização para viajar graças à pressão de importantes autoridades, entre elas o cônsul da França em Salvador. Finalmente, em dezembro de 1964, partiu em exílio para a Europa. Começava aí uma carreira internacional que se estenderia por 13 anos.
Para o filho nascer baiano
No exílio, atuou como professor e pesquisador nas universidades de Toulouse, Sorbonne e Bordeaux, na França, Massachusetts Institute of Technology (MIT) e Columbia, nos EUA, Caracas, na Venezuela, e Dar Es Salam, na Tanzânia. Suas pesquisas o levaram a estudar as características da economia urbana dos países pobres (então chamados subdesenvolvidos). Em 1972, na França, casou-se pela segunda vez, com Marie-Hélène Tiercelin, que havia sido sua aluna em Bordeaux. Também geógrafa, Marie foi uma importante parceira intelectual de Milton e traduziu parte de seus livros para o francês.
Quando Marie ficou grávida, aceitou atender a um pedido de Milton: viajarem ao Brasil, pois ele queria que o filho nascesse brasileiro — e, melhor ainda, baiano. Concebido no outono nova-iorquino, o segundo filho de Milton, Rafael, nasceu em Salvador em 1977. O retorno se tornou definitivo. A ditadura iniciava, então, um período de abertura política e alguns dos exilados, como ele, já podiam voltar para a terra natal sem o risco de serem presos novamente.
Santos voltou a lecionar no Brasil, primeiro na Universidade Federal do Rio de Janeiro e depois na Universidade de São Paulo (USP). Em 1995, uma justiça tardia: a Universidade Federal da Bahia, que havia demitido Santos pelo alegado motivo de “ausência”, quando foi preso, decidiu reintegrar o professor aos seus quadros como uma forma de reparação. Dois anos depois, tornou-se professor emérito da USP ao se aposentar.
O maior reconhecimento acadêmico veio em 1994, com a concessão do Prêmio Internacional de Geografia Vautrin Lud. Ao longo dos anos, 12 universidades brasileiras e 7 estrangeiras outorgaram a Santos o título de doutor honoris causa.
Diagnosticado com câncer de próstata nos anos 90, intensificou ainda mais sua produção. Numa época em que o mundo celebrava a globalização e o consenso em torno das medidas econômicas neoliberais, sua voz crítica se destacou. No ano 2000, publicou aquele que se tornaria seu livro mais conhecido entre o grande público: Por uma Outra Globalização (do pensamento único à consciência universal). Na obra, denunciava “uma globalização que servia a um número extremamente limitado de pessoas e de empresas”, assentada numa lógica perversa disfarçada de fábula. Ao mesmo tempo em que criticava a globalização na forma injusta com que se dava, Santos apontava que as mesmas ferramentas que vinham sendo usadas para tornar o mundo mais desigual poderiam vir a ser aproveitadas para criar um mundo melhor, se estivessem a serviço de outros fundamentos sociais e políticos.
Morreu pouco depois, em 24 de junho de 2001.
No ano seguinte, um dos alunos de Milton Santos, o vereador Nabil Bonduki, homenageou o mestre com a criação do Prêmio Milton Santos, por meio da Resolução 6/2002. “Propus esse prêmio para homenagear o intelectual e dar continuidade a suas ideias, além de reconhecer as iniciativas relacionadas ao território da cidade que precisam ter visibilidade”, explicou o parlamentar na época. A honraria busca homenagear “pessoas físicas, grupos informais ou pessoas jurídicas que apresentem trabalhos, promovendo formas locais de organização e desenvolvimento social no Município de São Paulo”.
Na última edição do prêmio, realizada em 2018, os vencedores foram a Banca Tatuí, uma banca de rua localizada na região central de São Paulo dedicada exclusivamente a publicações independentes, e a Rede de Economia Solidária, implantada pela União de Núcleos, Associações dos Moradores de Heliópolis e Região (Unas), que busca fortalecer os pequenos negócios da comunidade, localizada na zona sul, estimulando a cooperação entre os empreendedores locais.
São iniciativas que apostam nas possibilidades de formas de organização no território pensadas de baixo para cima e assentadas na solidariedade, como propunha Milton Santos. Hoje, na ausência de um dos maiores cientistas do Brasil, sua obra permanece como um guia para os que não se deixam enganar pelas fábulas que disfarçam a perversidade da realidade atual e como uma referência para imaginar que outros mundos são possíveis.
Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br
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Site
Filme
Encontro com Milton Santos: o mundo global visto do lado de cá. Direção de Silvio Tendler, 2006.
Livro
CONCEIÇÃO, Fernando. Milton Santos, uma biografia. Edição do Autor, 2016.