Rodrigo Garcia rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Uma cidade que tem comidas e bebidas nos nomes de bairros (Cambuci, Perus, Perdizes), avenidas (Jacu-Pêssego, Café), largo (Batata) e até um viaduto (Chá) parece predestinada a ser um importante centro gastronômico. Parece e é. São Paulo tem aproximadamente 9 mil restaurantes, bares e cafés, além de food trucks e ambulantes, segundo dados da Prefeitura.
Grande parte da riqueza gastronômica da cidade se deve aos migrantes (pessoas que saíram de outros municípios, Estados ou países por vontade própria) e dos refugiados (pessoas que foram forçadas a deixar seus países).
É o caso de Muna Darweesh, que vivia bem com o marido e os quatro filhos em Latakia, no litoral da Síria. Dava aulas de inglês e cuidava da casa. Mas em 2013, com o agravamento da guerra civil, a família pegou um barco e foi para o Egito. E depois um avião para São Paulo, sem saber nada sobre a cidade. “O Brasil foi o país que nos aceitou”, conta Muna.
Em São Paulo, ela consegue sobreviver graças ao que aprendeu com a mãe: cozinhar. Muna começou vendendo doces árabes na Mesquita Brasil, no Cambuci. Depois a ex-professora criou, no mesmo bairro, a Muna – Sabores & Memórias Árabes para fazer e entregar especialidades de seu país, como húmus, babaganuche e esfirra. “Passamos várias dificuldades, recebemos ajuda de muita gente e agora estamos conseguindo sobreviver com sacrifício”, diz à Apartes com um forte sotaque sírio. Muna ainda sente muitas saudades da terra natal, mas já virou fã da coxinha de galinha brasileira.
O brasileiro é muito aberto a novos sabores Jair Abril Rojas
O professor Celso dos Santos Silva, do curso de Gastronomia do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac), explica que a área de alimentos e bebidas é muito propícia para os estrangeiros ganharem renda, fazerem carreira no setor e até abrirem o próprio negócio.
Segundo Silva, que também é vice-presidente da Associação de Restauradores Gastronômicos das Américas e do Mundo (Aregala), há uma carência de mão de obra no setor por causa da pandemia. “Com ajuda, cursos, estágios, assessorias, os refugiados têm muitas possibilidades de crescer”, afirma. “Eles não são acomodados e são bem pró-ativos”.
Um caso de sucesso apontado pelo professor é o colombiano Jair Abril Rojas, que chegou a São Paulo em 2012. Primeiro trabalhou em um restaurante de comida baiana, depois montou um food truck especializado em arepas (espécie de tortinha à base de milho) e atualmente é proprietário do restaurante Macondo Raízes Colombianas, em Pinheiros. Macondo é a cidade imaginada pelo escritor colombiano Gabriel García Márquez no livro Cem anos de solidão.
O Instituto Adus, uma ONG que ajuda os refugiados a se estabelecerem em São Paulo, também usa a gastronomia como forma de integração. Oferece treinamentos e organiza feiras étnicas, com comidas típicas de vários países. “Queremos ampliar as redes de relacionamento dos estrangeiros para que consigam mostrar seus pratos, abrir portas e conseguir mais clientes”, explica o diretor-presidente do Adus, Marcelo Haydu.
Outro apoio para refugiados em São Paulo usarem a gastronomia como fonte de renda é a Migraflix, que começou como ONG e hoje é uma startup social. Organizando eventos com comidas típicas de vários países e oferecendo cursos para quem quer ser cozinheiro, ajudante de cozinha ou garçom, a Migraflix procura ser uma facilitadora para os estrangeiros. “Ajudamos principalmente nas questões burocráticas e nas normas sanitárias, que muitas vezes são bem diferentes dos países de origem”, explica a cozinheira e professora Ana Paula Gulin.
LEMBRANÇAS SENSORIAIS
Além de ser um ganha-pão, a culinária dos refugiados ajuda a manter as raízes. Segundo as pesquisadoras Marina Heck e Rosa Beluzzo, no livro Cozinhas dos imigrantes: memórias e receitas, as recordações culinárias são as mais resistentes ao tempo e à distância. Por isso, a lembrança dos pratos feitos pelos antepassados é tão importante para refugiados e imigrantes, “obrigados a se adaptarem a novas relações sociais, novos costumes e, sobretudo, novos hábitos alimentares”.
Ajudamos principalmente nas questões burocráticas e nas normas sanitárias, que muitas vezes são bem diferentes dos países de origem Ana Paula Gulin
As autoras explicam que o desejo de preservar a tradição, de resgatar a ancestralidade pelo paladar, é muito comum em países formados por migrantes, como o Brasil. Isso se deve à “necessidade de cultivar uma identidade na terra estrangeira”, afirmam.
Heck e Beluzzo também contam que quando os migrantes ganham destaque na sociedade que os recebe, alguns alimentos mudam de status. A polenta, por exemplo, é um prato que antigamente “simbolizava as privações”, mas passou a ser servido como iguaria.
Em outro livro, São Paulo: memória e sabor, Rosa Beluzzo diz que muitas vezes os migrantes ensinam seus costumes alimentares aos paulistanos. Cita o exemplo dos italianos, “que cultivaram e disseminaram o hábito de consumir verduras como escarola, almeirão, chicória, berinjela e pimentão”. A lista de influências estrangeiras que podem ser vistas e saboreadas nas ruas da capital paulista é longa: yakisoba (originário do Japão), churro (Espanha), hambúrguer (EUA), ceviche (Peru), dogão (EUA), crepe (França), empanada (Argentina), entre tantas outras.
RECONHECIMENTO
Essa diversidade de sabores levou a cidade de São Paulo a receber o título de capital mundial da gastronomia durante o 10º Congresso Internacional de Hospedagem, Gastronomia e Turismo (Cihat), em 1997. Na época, o reconhecimento foi feito por representantes de países que tivessem pelo menos um restaurante de comida típica na capital. No total, foram 43 nações.
No mesmo ano, a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) criou o Troféu São Paulo: Capital Mundial da Gastronomia, concedido anualmente à mídia especializada em divulgar o que se come e o que se bebe na cidade.
Na justificativa do projeto que criou o prêmio, o vereador Aurélio Nomura (PSDB) e os ex-vereadores Aldaíza Sposati, Antonio Goulart, Miguel Colasuonno e Mohamad Said Mourad destacam a importância da gastronomia para o desenvolvimento da capital como um polo turístico: “A indústria do turismo oferece as melhores perspectivas em termos de geração de empregos, daí merece todos os esforços do poder público”.
Galeria de fotos premiadas
No início, eram seis categorias. Hoje são 13, acompanhando as transformações dos meios de comunicação. Há até premiação para aplicativos destinados a facilitar o acesso a informações sobre a gastronomia na cidade e para páginas em redes sociais que divulguem a oferta gastronômica de São Paulo.
O atual presidente da Comissão Extraordinária de Apoio ao Desenvolvimento do Turismo, do Lazer e da Gastronomia da CMSP, vereador Rodrigo Goulart (PSD), é um entusiasta do Troféu. “O Prêmio significa muito para a gastronomia paulistana, pois, além de estimular a produção, reconhece a contribuição dos premiados para que São Paulo permaneça a Capital Mundial da Gastronomia”, afirma à Apartes. “O turismo gera emprego, renda e tributos e a excelência da gastronomia paulistana integra esse segmento capaz de manter o desenvolvimento sustentável da cidade.”
Filho de Antonio Goulart, um dos ex-vereadores que criaram o Troféu, Rodrigo lembra que o pai sempre comentava em casa sobre os jornalistas premiados e sobre a importância do prêmio. Já receberam o Troféu São Paulo: Capital Mundial da Gastronomia celebridades como Ana Maria Braga, Silvio Lancellotti, Olivier Anquier, Ronnie Von e Marcio Canuto.
A premiação também contempla estudantes. A categoria Trabalho Acadêmico é destinada a alunos dos cursos superiores de Turismo, Gastronomia, Hotelaria, Jornalismo e Rádio, TV e Internet. Em 2021, a vencedora foi Tamiris Galutti de Lima, aluna de Gastronomia da Universidade Mackenzie, com o trabalho A trajetória do feijão com farinha ao virado à paulista, um prato essencialmente caipira na capital mundial da gastronomia.
Nos 25 anos do Troféu, as obras premiadas têm mostrado a diversidade da culinária paulistana. Como afirma o colombiano Jair Abril Rojas, no livro Prato do mundo, “o brasileiro é muito aberto a novos sabores”.
Edição: Sândor Vasconcelos sandor@saopaulo.sp.leg.br
SAIBA MAIS
Livros
BARANBO, Ghazal, NGKANG, Sylvie e PATAQUIVA, Liliana. Reconectando raízes: uma história de amores e sabores. Instituto Adus, 2022.
DARWEESH, Muna, ROJAS, Jair Abril e outros. Prato do mundo. Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), 2020.
BELUZZO, Rosa. São Paulo: memória e sabor. Editora Unesp, 2008.
BELUZZO, Rosa e HECK, Marina. Cozinha dos imigrantes: memórias e receitas. DBA Melhoramentos, 1998.
Reportagem da TV Câmara SP
Troféu São Paulo: Capital Mundial da Gastronomia chega à sua 25ª edição