Perfil

O primeiro presidente

Em 1948, Marrey Junior foi o escolhido pelos vereadores para presidir a 1ª Legislatura após o fim do Estado Novo
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Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

Publicada originalmente em jul/2018

Um sobrenome de origem francesa passou a ser o primeiro nome de vários meninos em São Paulo por conta do prestígio do político José Adriano Marrey Junior. Muitos de seus eleitores resolveram homenagear o parlamentar, que também foi advogado e grão-mestre da Maçonaria, batizando os filhos como Marrey.

Suas qualidades chamavam a atenção até de quem não o conhecia pessoalmente. Foi o caso de Monteiro Lobato. Em 1941, o escritor estava preso por fazer oposição à ditadura de Getúlio Vargas, quando enviou uma carta ao político, dizendo-lhe que seu nome era unanimidade entre os presos da Casa de Detenção. “Há um advogado sobre cuja honestidade e valor os grandes e verdadeiros juízes dos advogados, que são os presos, juram a pés juntos: Marrey Junior”, escreveu Lobato. “É estudioso, é o que melhor analisa e argumenta.”

Marrey Junior nasceu em Itamarandiba (MG), em 7 de agosto de 1885, numa família de políticos. Seu pai, José Adriano Marrey, francês naturalizado brasileiro, foi vereador em Itamarandiba e prefeito de Teófilo Otoni (MG). O avô Jean-Claude Marrey ocupou o posto de prefeito em Moncey, na França.

Aos 13 anos, Marrey Junior chegou a São Paulo para estudar. Foi vendedor de leite e, mais tarde, redator do jornal O Commercio. Formou-se na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, que hoje faz parte da Universidade de São Paulo (USP), em 1906. Seis anos depois, já era juiz de paz do Distrito de Santa Efigênia, na região central de São Paulo, eleito pelo povo.

“Há um advogado sobre cuja honestidade e valor os grandes e verdadeiros juízes dos advogados, que são os presos, juram a pés juntos: Marrey Junior” Monteiro Lobato

Com 1.523 votos, Marrey Junior elegeu-se vereador pela primeira vez em 1914. Na Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), apoiou a primeira greve geral realizada na cidade. “A vida está se tornando dificílima, principalmente aos operários”, afirmou na Tribuna do Palacete Prates (então sede da Câmara), em 16 de julho de 1917. “É preciso pôr limites ao desejo insaciável dos que estão e querem continuar a usufruir a situação, em detrimento dos mais fracos”, completou na ocasião.

Uma comissão formada por três vereadores se juntou ao prefeito e ex-vereador Washington Luís para negociar com o governo do Estado uma solução para a crise. “Aqui também ecoa o grito dos que sofrem”, proclamou Marrey. Após o fim da paralisação, ele foi advogado de defesa de um dos líderes grevistas, o gráfico e jornalista Edgard Leuenroth (conheça melhor essa história no boxe abaixo).

Uma das maiores greves do País

Ficha policial de Edgard Leuenroth, um dos líderes da greve e acusado de ser
“autor psíquico-intelectual” de saques a veículos que transportam farinha de trigo
Arquivo Edgard Leuenroth/Unicamp

Em 9 de julho de 1917, o sapateiro espanhol José Martinez, de 21 anos, participava de uma manifestação em frente à fábrica Mariangela, no Brás (zona leste de São Paulo), em apoio à greve dos operários, que exigiam melhores condições de trabalho. Foi morto a bala por soldados da Força Pública (antecessora da Polícia Militar). O enterro foi três dias depois, com a presença de mais de 10 mil pessoas, maior manifestação de massa até então em São Paulo. A multidão, acompanhando o corpo, saiu do Brás, passou pelo Centro, pegou a Rua da Consolação e depois a Avenida Municipal (atual Avenida Doutor Arnaldo) até o Cemitério do Araçá, onde Martinez foi sepultado. As pessoas caminharam 7 quilômetros “sob um silêncio impressionante, que assumiu o aspecto de uma advertência”, narra Edgar Leuenroth, um dos líderes dos grevistas, em carta enviada ao jornal O Estado de S. Paulo em 27 de março de 1966. Mas o barulho logo tomou conta da cidade. Nos dias seguintes a manifestação ampliou-se. Os grevistas incendiaram bondes, atacaram veículos que transportavam farinha de trigo e ergueram barricadas. Indústria, comércio e transporte urbano pararam. As autoridades reagiram com mais violência. O professor Jacob Penteado escreveu no livro Belenzinho 1910: retrato de uma época, que “os cavalarianos (soldados da Cavalaria) subiam nas calçadas, de sabre em punho, e atacavam até mulheres e crianças, que estavam à janela ou à porta de suas casas. O clima era de intenso terror”. Até hoje não se sabe ao certo o número de mortos e feridos nos conflitos. Naqueles dias, circulou nas ruas e foi publicado pela imprensa o Apelo aos soldados, um panfleto, assinado por um grupo de mulheres grevistas, que conclamava as tropas do Exército a não agirem contra os operários: “Os grevistas são vossos irmãos na miséria e no sofrimento. Os grevistas morrem de fome, ao passo que os patrões morrem de indigestão. Soldados, recusai-vos o papel de carrasco”. Com a intermediação de donos de jornais, os empresários começaram a negociar com os grevistas e houve acordo. As principais conquistas foram aumento salarial de 20%, libertação dos presos, estabilidade no emprego e fim do trabalho infantil. Contudo, a sensação de vitória durou pouco. A inflação rapidamente acabou com o ganho salarial, vários líderes grevistas estrangeiros foram deportados e Leuenroth acabou preso, acusado de ser o “autor psíquico-intelectual” de saques a veículos que levavam sacas de farinha de trigo. O vereador Marrey Junior foi um de seus advogados. Após passar seis meses preso, Leuenroth foi absolvido. Para celebrar a greve de 1917, considerada uma das mais importantes da história do Brasil, e preservar a trajetória de lutas do sapateiro, a Câmara Municipal de São Paulo aprovou a lei 16.634/2017, proposta por Antonio Donato (PT), que acrescentou ao Calendário Oficial o 9 de julho como o Dia da Luta Operária.

Um de seus netos, o procurador de justiça Luiz Antônio Marrey conta que o avô buscava sempre atuar no lado da defesa. “Ele amassava barro para defender imigrantes italianos, indo ao Brás em ruas que sequer eram asfaltadas”, orgulha-se. “Tinha muita sensibilidade social.”

Segundo ele, o avô, dono de uma memória prodigiosa, era capaz de decorar muitas páginas de um processo para usá-las no momento oportuno, isso “numa época em que não havia nem xerox”, ressalta.

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Quatro netos de Marrey se destacam na área jurídica: da esquerda para a direita, o advogado Pedro Marrey Junior, o desembargador aposentado José Adriano Marrey Neto, o desembargador Luiz Edmundo Marrey Uint e o procurador Luiz Antônio Marrey
Quatro netos de Marrey se destacam na área jurídica: da esquerda para a direita, o advogado Pedro Marrey Junior, o desembargador aposentado José Adriano Marrey Neto, o desembargador Luiz Edmundo Marrey Uint e o procurador Luiz Antônio Marrey

Arquivo pessoal

Como disse o escritor Menotti del Picchia, naqueles tempos “as vedetes eram os advogados criminais: um júri sensacional representava uma festa para a cidade”. De acordo com Del Picchia, Marrey “era um argumentador persuasivo, senhor de fascinante capacidade de exposição e lógica”, que “impunha respeito pela austeridade das maneiras”.

Luiz Antônio deixa claro, no entanto, que os embates com a Promotoria davam-se apenas nos tribunais. O neto se lembra que, em certa ocasião, após um julgamento no interior de São Paulo, o avô e o promotor voltavam no mesmo trem para a capital e pararam em uma estação. “Meu avô propôs dividirem um bilhete de loteria”, conta. Tiveram sorte e ganharam o prêmio. O promotor fez uma viagem à Europa e Marrey Junior comprou mais volumes para a sua biblioteca. “Os dois aproveitaram bem o dinheiro”, diz Luiz Antônio.

Exibindo fotografias antigas, lembra histórias contadas pela família e ressalta a simpatia do avô. “No bonde, cumprimentava todo mundo e todos falavam com ele. Gostava de ficar no meio do povo, a casa dele na Vila Mariana era cheia de gente”. Lamenta, porém, não ter conhecido melhor o avô, que morreu quando Luiz Antônio tinha apenas nove anos.

“LAMA, SANGUE, VERGONHA…”

Em uma situação impossível pela legislação atual, mas legal na época, durante o ano de 1919 Marrey foi vereador e deputado estadual ao mesmo tempo, eleito pelo Partido Republicano Paulista (PRP).

Insatisfeito com a aristocracia conservadora do Estado, cujos interesses eram representados pelo PRP, Marrey se uniu a outros políticos, entre eles o conselheiro Antonio Prado, ex-prefeito e ex-vereador de São Paulo, para fundar o Partido Democrático, em 1926.

No Parlamento estadual, era o único deputado do Partido Democrático e fazia oposição ao presidente (governador) de São Paulo, Carlos de Campos, do PRP.  Em 1927 foi eleito para a Câmara Federal.

Cartazes da campanha para o Congresso em 1927 mostram que o Partido Democrático combatia as práticas de compra de voto usadas na República Velha
Centro de Memória Eleitoral do TRE-SP

No ano seguinte, concorreu à Prefeitura de São Paulo e foi derrotado por José Pires do Rio (PRP), reeleito. O Diário Nacional, veículo do Partido Democrático, fundado e dirigido por Marrey Junior, denunciou fraudes. “Lama, sangue, vergonha…” foi a manchete do jornal em 1º de novembro.

Décadas depois, em 1985, o então deputado federal Plínio de Arruda Sampaio disse que Marrey não teve sua eleição validada “nos famigerados sistemas de reconhecimento das atas eleitorais, uma forma da República Velha para cassar aqueles que, eleitos pelo povo, não tinham o reconhecimento dos poderosos”.

“Era um argumentador persuasivo, senhor de fascinante capacidade de exposição e lógica. Impunha respeito pela austeridade das maneiras” Menotti del Picchia

Marrey Junior também atuou politicamente na Maçonaria. Em 1921, liderou uma dissidência do Grande Oriente Estadual de São Paulo, associação de lojas maçônicas, contra a organização nacional e criou o Grande Oriente de São Paulo, do qual foi grão-mestre até 1942. Em diversas ocasiões desse período, enfrentou perseguições à Maçonaria, pois o governo de Getúlio Vargas (1930 a 1945) a pôs na ilegalidade.

JUSTIÇA HISTÓRICA

Após sua primeira passagem pela Câmara Federal (1927 a 1930), o político retornou à CMSP em 1936. Essa legislatura foi interrompida um ano depois por ordem de Vargas. Em 2013, Marrey Junior teve seu mandato restituído postumamente pela resolução 20/2013 da Câmara Municipal, proposta pelos vereadores Natalini (PV), Juliana Cardoso (PT), José Police Neto (PSD) e Mário Covas Neto (Podemos) e pelos ex-vereadores Rubens Calvo, Laércio Benko, Ricardo Young, José Américo e Orlando Silva. A decisão reconheceu “como atos antidemocráticos e injustos a cassação dos direitos políticos de vereadores eleitos em 1937”. Dois netos do vereador cassado receberam o diploma em seu nome: Luiz Antônio e Luiz Edmundo Marrey Uint.

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Marrey teve o mandato de vereador cassado pelo Estado Novo e 76 anos depois os netos Luiz Antonio e Luiz Edmundo receberam dos então vereadores Natalini, José Américo e Orlando Silva um diploma restituindo simbolicamente o cargo
Marrey teve o mandato de vereador cassado pelo Estado Novo e 76 anos depois os netos Luiz Antonio e Luiz Edmundo receberam dos então vereadores Natalini, José Américo e Orlando Silva um diploma restituindo simbolicamente o cargo

Acervo CMSP

No Legislativo, na Prefeitura (onde foi secretário de Negócios Internos e Jurídicos) e no governo do Estado, quando chefiou a Secretaria de Justiça, Marrey deu atenção especial a mulheres e crianças.

Na Assembleia Legislativa, por exemplo, apresentou em 1921 um projeto para criar um Juizado de Menores (atual Vara da Juventude), que dava poderes aos juízes para adotar um trâmite mais rápido nos processos envolvendo crianças e adolescentes. Três anos depois, a proposta se tornou a lei 2059/1924.

PRESIDENTE PÉ-DE-MEIA

De volta à Câmara de Vereadores em 1948, Marrey Junior foi escolhido presidente da 1ª Legislatura após a reabertura política. No cargo, destacou-se por instituir medidas de austeridade.

Quando ia ao Rio de Janeiro, então capital federal, para tratar de questões municipais, fazia questão de pagar as despesas com recurso próprio. Proibiu a compra de um automóvel que seria usado pela Presidência e só permitia que vereados viajassem em missões oficiais quando eram muito necessárias. Caso contrário, podiam viajar, mas sem gastos pagos pela Câmara. Por conta dessas medidas, ganhou o apelido de presidente pé-de-meia.

Em outros cargos também demonstrava preocupação com o dinheiro público. Em 1959, o então vice-presidente da CMSP, Ermano Marchetti, lembrou em sessão solene que, quando Marrey ocupava a Secretaria da Justiça do Estado, nomeou um funcionário. Tempos depois, após concluir que o nomeado não era adequando ao posto, demitiu-o e fez questão de devolver a quantia correspondente aos salários.

Em outra ocasião, na Secretaria de Negócios Internos e Jurídicos da Prefeitura, verificou que havia sido feito um pagamento superior ao que fora determinado e ordenou que o excesso fosse devolvido ao Tesouro municipal. Exigiu que a devolução fosse dividida, em partes iguais, por todos os funcionários envolvidos no pagamento indevido, até mesmo o diretor do Tesouro.  “Marrey Junior sabe dar lições de respeito a si mesmo, à administração e ao povo”, resumiu Marchetti.

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Em quase 80 anos, Marrey se destacou como vereador, deputado estadual e federal, secretário de Negócios Jurídicos e de Justiça e grão-mestre da Maçonaria
Em quase 80 anos, Marrey se destacou como vereador, deputado estadual e federal, secretário de Negócios Jurídicos e de Justiça e grão-mestre da Maçonaria

Centro de Memória Eleitoral do TRE-SP

No período em que ocupou a Presidência da CMSP, liderou uma luta para que o prefeito de São Paulo voltasse a ser eleito pelo povo, e não indicado pelo governador. “O que o povo exige é apenas a entrega do Poder Executivo municipal a um homem de bem que se capacite do dever que a natureza do cargo lhe impõe, de prover as suas necessidades essenciais”, escreveu Marrey, em 1950, ao então presidente da República, Eurico Gaspar Dutra. “O prefeito de São Paulo precisa e deve ser um homem independente, que se submeta somente ao imperativo da Lei e do interesse geral”, completou. A campanha foi vitoriosa e em 1953 os paulistanos elegeram Jânio Quadros para prefeito.

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Insatisfeitos com o Partido Republicano Paulista, Marrey Junior e outros dissidentes se uniram ao ex-prefeito Antonio Prado para fundar, em 1926, o Partido Democrático
Marrey Junior foi um dos líderes na luta para que os paulistanos voltassem a eleger o prefeito, o que ocorreu novamente a partir de 1953

Arquivo pessoal

Marrey Junior morreu em 14 de março de 1965, aos 79 anos, em São Paulo. Nas comemorações de seu centenário, em 1985, o então deputado federal Celso Peçanha, que nos anos 1950 havia sido colega de Marrey no Parlamento federal, descreveu-o como uma pessoa de “bom papo” e um “político fino”. Flavio Bierrenbach, na época deputado federal, disse na tribuna da Câmara dos Deputados que Marrey havia sido um dos grandes defensores da autonomia dos municípios: “O exercício da vereança talvez fosse a atividade que mais lhe tenha agradado”.

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Segundo o neto Luiz Antônio, o avô gostava de estar no meio do povo: “No bonde, todo mundo falava com ele e a casa na Vila Mariana era cheia de gente”
Segundo o neto Luiz Antônio, o avô gostava de estar no meio do povo: “No bonde, todo mundo falava com ele e a casa na Vila Mariana era cheia de gente”

Acervo pessoal

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