Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Publicada originalmente em jun/2014 – edição nº 08
Dentro do carro, o olhar vesgo do jovem vereador Jânio Quadros se fixou numa quitanda da Rua Líbero Badaró, no centro de São Paulo. “Pare o carro, Chico”, pediu ao dono do automóvel, o também vereador Francisco Assumpção Ladeira. Os dois haviam acabado de almoçar juntos, na casa de Jânio, onde Chico se impressionara com a pobreza do colega, evidente na comida simplória e no sofá com molas saltando para fora do estofamento.
Jânio desceu do carro e foi até a quitanda. Perguntou ao português dono do estabelecimento se poderia levar um abacaxi estragado que estava jogado em uma cesta. O proprietário estranhou o pedido, mas deixou que o vereador saísse de lá com a fruta podre enrolada em jornal. Jânio voltou ao veículo e foi com Chico até a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), que, nos anos 40, funcionava no Palacete Prates, no Vale do Anhangabaú.
No plenário, pediu a palavra. Diante do microfone, brandiu o abacaxi podre e disse que havia flagrado a fruta sendo vendida pelo comércio. Fez um discurso inflamado em que denunciou a baixa qualidade dos produtos oferecidos ao público paulistano. “Foi fazendo essas coisas que ele chegou a presidente da República”, concluiu Ladeira, ao contar a história em entrevista de 2008, três anos antes de morrer.
Entre janeiro de 1948 e março de 1951, período que marcou a estreia de Jânio Quadros na vida política, como vereador da primeira legislatura da CMSP após o fim da ditadura do Estado Novo, ele já adotava aquelas que seriam as principais marcas de toda a sua carreira.
ASCENÇÃO RÁPIDA
O vereador Jânio Quadros abraçou bandeiras que misturavam reivindicações típicas da esquerda e da direita. Ao mesmo tempo em que denunciava as condições de vida miseráveis do “proletário” e atacava as grandes corporações, pedia a intervenção do Estado para resolver todos os problemas do povo. Também lutava por causas curiosas que tivessem uma pegada moralista, incluindo o combate à exibição de seios nas telas de cinema e à venda de histórias em quadrinhos nas bancas de jornais.
Após deixar a vereança, Jânio precisou de apenas dez anos para chegar à Presidência da República, passando pelos cargos de deputado estadual, prefeito e governador. Mas se a ascensão foi meteórica, o auge foi fugaz.
No Palácio do Planalto, voltou a levantar bandeiras incomuns, com cores moralistas. Criou leis que proibiam as brigas de galo, os maiôs em concursos de misses e os biquínis nas praias. Também embaralhou direita e esquerda ao combinar uma política interna conservadora com uma política externa independente, que buscou a aproximação com países comunistas e condecorou o então ministro Ernesto Che Guevara, um dos líderes da Revolução Cubana. Em 25 de agosto de 1961, renunciou à Presidência, após sete meses no cargo.
“Jânio Quadros acreditava que o Congresso e os ministros militares não fossem aceitar a sua renúncia, afinal, no passado, todas as vezes em que havia exercido esse ato, tinha sido imediatamente reconduzido ao poder, conseguindo melhores posições políticas”, relata a cientista social Vera Chaia, no livro A Liderança Política de Jânio Quadros (1947-1990). O presidente sabia que os ministros militares, alinhados com os interesses norte-americanos, teriam dificuldade para engolir seu vice, João Goulart, com perfil ligado à esquerda. Afonso Arinos de Mello Franco, ministro de Jânio, e o amigo J. B. Vianna de Moraes, citados pela autora, afirmam que ele apostava que as Forças Armadas assumiriam o controle do País e o chamariam de volta à Presidência, politicamente fortalecido.
Mas o blefe foi levado a sério e Goulart tornou-se presidente, apenas para ser deposto três anos depois, em 31 de março de 1964, com um golpe de Estado. Era o começo de uma ditadura militar que só acabaria em 1985. Neste mesmo ano, Jânio comemorou sua última conquista política, ao ser eleito, pela segunda vez, prefeito de São Paulo (veja mais na linha do tempo).
DESMAZELO E CASPA
O joguinho da renúncia era uma mania anterior à política. “Em uma das escolas onde trabalhou, chegou a demitir-se mais de uma vez, irritado com qualquer coisa, apenas para aparecer na mesma escola no dia seguinte pontualmente, na hora da aula, como se nada tivesse acontecido”, descreve o primeiro volume da obra Jânio: Vida e Morte do Homem da Renúncia, biografia com milhares de páginas que vem sendo escrita e editada por Bernardo Schmidt. A trajetória de Jânio como vereador é o tema do segundo volume da obra.
Formado em Direito no Largo São Francisco da Universidade de São Paulo, Jânio trabalhou como advogado, mas o grosso da sua renda vinha das aulas de geografia e português que dava em colégios como Dante Alighieri e Vera Cruz. Orgulhava-se de ser “um professor muito austero”, que não permitia meninas de batom em suas aulas e obrigava os alunos atrasados a entrarem pela janela. Apesar da dureza, era um mestre querido, tanto que os alunos foram seus principais cabos eleitorais quando decidiu se lançar candidato pela primeira vez, em 1947, pelo pequeno Partido Democrata Cristão (PDC).
Logo na sua primeira campanha, ele tratou de se mostrar como um representante da classe trabalhadora que começava a encher as periferias de São Paulo. Apesar do português empolado de professor das antigas, mantinha uma aparência descuidada que passava a imagem de um homem simples. Durante a campanha e mesmo depois de eleito vereador, apresentava-se com “cabelos compridos, despenteados, barba até de 15 dias por fazer, roupa amarrotada, suja, gravata com laço feito há meses, enfim, um homem desleixado, com noites mal dormidas”, descreve J. Viriato de Castro em O Fenômeno Jânio Quadros.
O aspecto desleixado, consequência real de uma campanha pesada conduzida por um homem sem recursos, com o tempo se tornou um instrumento de marketing. Para continuar a pagar de homem do povo, Jânio adotou o desmazelo como uniforme pelo resto da vida política. Chegava a simular que havia caspa sobre os ombros do terno escuro para parecer mais humilde.
LIBERAL ATÉ CERTO PONTO
A campanha modesta do candidato desarrumado foi vitoriosa. Jânio elegeu-se vereador com 1.707 votos, suficientes para uma cadeira no Parlamento paulistano. Em 31 de dezembro de 1947, na véspera da posse da nova Câmara Municipal, uma decisão da Justiça Eleitoral cassou os mandatos de 15 vereadores comunistas do Partido Social Trabalhista (PST). Surgiu aí a lenda de que Jânio teria sido eleito como suplente e empossado graças a essas cassações. Uma mentira que ganhou pernas longas e foi repetida em quase todas as biografias do político, exceto a mais recente, de Schmidt.
“O proletário está condenado a nascer e morrer proletário, e na sua pobreza só consegue empobrecer mais” - Jânio Quadros
Em comum com os comunistas, Jânio disputava o voto das classes trabalhadoras. Ia a diferentes bairros da cidade, de Perus à Mooca, além de visitar os locais de trabalho dos operários, para depois denunciar na tribuna e nos jornais como essas pessoas moravam e trabalhavam mal em São Paulo. “O proletário está condenado a nascer e morrer proletário, e na sua pobreza só consegue empobrecer mais”, afirmou em discurso na tribuna.
A atuação de Jânio teve características de parlamentar de esquerda, tanto que o seu principal parceiro de legislatura era o vereador Cid Franco, do Partido Socialista Brasileiro (PSB). Só que Jânio não queria saber de denunciar o sistema econômico ou propor revoluções. Ele se definia como “um liberal na concepção boa do vocábulo”, embora costumasse propor a ação do Estado como “agente político controlador, fiscalizador e educador da sociedade” para a resolução da maioria dos problemas, como afirma Vera Chaia. Um Estado que, para a população, apareceria encarnado na humilde figura de Jânio, o político moralizador. Surgia uma das bases do janismo: a crença, segundo a autora, num “líder que poderia resolver os problemas nacionais”.
O PERIGO DO POPEYE
Jânio não era nada liberal quando se tratava de pedir a ação do Estado contra os que considerava os inimigos da saúde física e moral do povo brasileiro. Esses adversários podiam assumir várias formas, de refrigerantes a marinheiros comedores de espinafre.
Ele denunciou em seus discursos a Coca-Cola, a qual chamava de “purgante”, e também o remédio Melhoral, que, na época, usava o slogan “É melhor e não faz mal”. Com base numa reportagem do Diário da Noite, o vereador rebateu dizendo que o remédio “é pior e faz positivamente mal”.
As histórias em quadrinhos receberam ataques ainda mais violentos. Para o parlamentar, personagens como o marinheiro Popeye ou o homem das cavernas Brucutu estimulavam a violência e faziam “um trabalho de desagregação lento, mas seguro”, que acabaria, depois, “na irreparável delinquência de reformatórios e penitenciárias”.
Cinemas, circos, teatros e bingos também entraram no alvo da metralhadora moralista de Jânio. O filme checo Êxtase, de 1933, em que a atriz Hedy Lamarr mostrava os seios, foi denunciado num pronunciamento em que criticou “as produções obscenas, que constrangem, envergonham e revoltam a assistência desprevenida do conteúdo dessas películas”. No caso dos bingos, tratava-se de um jogo que ameaçava “infeccionar o pouco que permanecia bom na sociedade”, enquanto os espetáculos de circo exibiam “imoralidades gritantes”.
Sobre uma peça de teatro de revista estrelada por Dercy Gonçalves, que considerava “pornográfica” e “imoralíssima”, Jânio lamentou que não sofresse repressão da polícia. “Ei-la aqui, sem nenhuma interferência da autoridade policial, que só existe para perseguir operários”, disse.
Outra marca dele era a teatralidade. Gostava de transformar suas falas na tribuna em performances, fosse com gestos grandiosos, palavras difíceis ou mesmo levando objetos. Além do abacaxi estragado, Jânio carregou para o Palacete Prates um paralelepípedo recolhido na rua para denunciar o descuido da administração com o calçamento e até um enorme pedaço de carne malcheirosa, que, segundo ele, estaria sendo vendida num mercadinho da Vila Maria.
JOGO DE CENA
Jânio soube tirar proveito até de um murro que recebeu do vereador Altimar de Lima. O motivo da briga era o Projeto de Lei 234/1949, que previa uma série de incentivos para clubes esportivos e que despertou manifestações contrárias de estudantes nas ruas, parecidas com os protestos dos movimentos contra a Copa do Mundo em 2014.
Contrário ao projeto, ele havia batido boca com o colega Carlos Fairbanks, a quem chamou de “fascista”. Tomando as dores de Fairbanks, Altimar passou a discutir com Jânio e desferiu um murro no colega, que caiu para trás e bateu a cabeça, sofrendo um pequeno corte. Sangrando, Jânio não só continuou na tribuna, como aproveitou para anunciar: “Este projeto só passará com as marcas do meu sangue”.
Brigas como essa estavam longe de ser raridade naquela época. “Era comum os vereadores brigarem fisicamente no plenário. Muitos iam para o Palacete Prates armados”, aponta Schmidt. Ele lembra que o próprio Jânio, na mesma legislatura, trocou socos com Cantídio Sampaio e José Estefno.
Entre os jogos de cena que gostava de fazer estavam as ameaças de renúncia. Segundo Schmidt, a primeira ocorreu no início do mandato, quando foi criticado nos jornais por apoiar uma decisão que criava salário para os vereadores, que até então trabalhavam sem receber. Numa entrevista ao jornal Diário da Noite, afirmou que estava magoado com as críticas e pensava em deixar o cargo.
Em 23 de fevereiro de 1948, Jânio apresentou, na Comissão de Defesa da Saúde e Economia do Povo, dois requerimentos em que questionava os gastos da Prefeitura, que acabaram adiados. Diante disso, o vereador tomou a palavra para anunciar “a renúncia, em caráter irrevogável” do cargo de membro da comissão, decisão que revogou minutos depois. Em 16 de abril, Jânio anunciou que renunciaria a duas comissões especiais por estar “adoentado”, de novo em “caráter irrevogável”. Alguns vereadores pediram que reconsiderasse, em nome do “bem-estar geral da coletividade paulistana”. Novamente revogou o irrevogável, e manteve-se no cargo politicamente fortalecido.
As três ameaças eram puro jogo de cena. Jânio só renunciou de verdade à vereança em março de 1951, para assumir a cadeira de deputado estadual na Assembleia Legislativa de São Paulo, onde prosseguiu na sua trajetória política.
Em 1961, tentou aplicar o mesmo blefe da renúncia no Planalto. Do mesmo jeito que fez quando era professor, e quando foi vereador. O jogo de presidir um país durante a Guerra Fria, contudo, era mais complicado do que ele estava habituado. Sua manobra não deu certo. Só serviu para abrir caminho a uma crise que, três anos depois, desembocou numa sangrenta ditadura militar.
Nome de medalha em homenagem aos GCMs
A Medalha e Diploma Jânio Quadros, da Câmara Municipal de São Paulo, serve para homenagear “guardas civis metropolitanos que se destacarem em ações benéficas aos munícipes da cidade de São Paulo”, além de “personalidades civis e militares da sociedade paulistana”.
A medalha, proposta pelos vereadores Coronel Telhada e José Américo em 2014, e o diploma, proposto por Telhada em 2015, levam o nome de Jânio por ele ter sido o prefeito que criou a Guarda Civil Metropolitana, em 1986. A entrega da honraria ocorre todo ano, em 15 de setembro ou no primeiro dia útil seguinte.
SAIBA MAIS
Livros
O Fenômeno Jânio Quadros. J. Viriato de Castro. Edição do autor, 1956.
Jânio Quadros: O Prometeu de Vila Maria. Bernardo Schmidt. O Patativa, 2011.
Jânio: Vida e Morte do Homem da Renúncia. Volume 1: Um Moço bem Velhinho. Ricardo Arnt. Ediouro, 2004
A Liderança Política de Jânio Quadros.. Vera Chaia. Humanidades, 1991.
São Paulo na Tribuna: Primeira Legislatura (1948-1951). Luiz Casadei Manechini (organizador). Câmara Municipal de São Paulo, Imprensa Oficial do Estado, 2012