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Políticos de chuteiras

Em tempo de Copa do Mundo, conheça as histórias de três jogadores que viraram vereadores
Tempo estimado de leitura: 9 minutos

Fausto Salvadori Filho | fausto@saopaulo.sp.leg.br
Colaboração: Raphaella Magalhães Salomão | raphaella-cci3est@saopaulo.sp.leg.br

Publicada originalmente em maio/2014 – edição 7

Os três trocaram chuteiras e gramado por gravata e plenário. Todos dizem que começaram “sem querer querendo”, pensando mais em ajudar amigos do que no jogo. Um dos jogadores garante que teve boa atuação em campo, outro assume que foi perna-de-pau e um terceiro prefere dizer que o desempenho é da equipe. Dois deles participaram de apenas um campeonato (ou mandato) e depois abandonaram as partidas; um terceiro ainda fez algumas tentativas de voltar a jogar.

O palmeirense Ademir da Guia e os corintianos Biro-Biro e Zé Maria são os três jogadores de futebol que conseguiram balançar a rede nas eleições para a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP). Zé Maria deu o pontapé inicial em 1983, ao iniciar o mandato de vereador pelo PMDB. Em seguida, veio Biro-Biro, que em 1989 entrou para o time do Palácio Anchieta, sede da Câmara, pelo PDS. Em 2005, foi a vez de Ademir da Guia, vestindo a camisa do PCdoB. Outros nomes ligados à bola também fizeram gol nas urnas. Um dos pioneiros foi o massagista Mário Américo, que chegou à CMSP em 1979, usando como chamariz o poder das mãos que haviam tratado de Pelé, Garrincha e outros craques das seleções vitoriosas nas Copas de 1958, 1962 e 1970.

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Zé no lançamento da pedra fundamental do futuro Itaquerão - Acervo CMSP

Zé no lançamento da pedra fundamental do futuro Itaquerão – Acervo CMSP

Cavalo de Aço

“Futebol e política andam juntos desde que me entendo por gente”, reconhece José Maria Rodrigues Alves, 69 anos. Ele lembra que seu pai, o funcionário público Durvalino Rodrigues Alves, era “uma das pessoas mais influentes” de Botucatu (SP), sua cidade natal, e também havia sido treinador de futebol. Na infância de Zé, políticos e jogadores se misturavam na sua casa.

Conhecido como Super Zé ou Cavalo de Aço, o lateral-direito jogou pela seleção brasileira nas Copas de 1970 e 1974, mas é lembrado principalmente pela atuação no Corinthians, com destaque para a participação na final histórica do Campeonato Paulista de 1977, quando o time pôs fim a uma fila de 23 anos sem título. As vitórias levaram Zé a se aproximar dos políticos. “Na Copa do Mundo, a gente conhecia senadores, deputados, presidente da República. Em 77, o governador Paulo Egydio Martins recebeu a gente no Palácio”, lembra.

Em 1982, um ano antes de deixar os gramados, foi convencido pelo então secretário estadual de Esportes, Flávio Adauto, a se lançar nas eleições a vereador para ajudar na candidatura do jornalista esportivo Caio Pompeu de Toledo a deputado estadual. “Entrei nessa para ajudar os amigos”, conta. A ideia é que, se fosse eleito, Zé iria para a Secretaria Municipal de Esportes, mas o plano não saiu como previsto. Eleito com 33.210 votos, Zé teve de permanecer os seis anos daquela legislatura como vereador.

"Saí de cabeça erguida" Zé Maria

Ou quase. No primeiro ano, o jogador, que ainda estava na ativa de forma amadora, pediu licença do mandato e voou para os Estados Unidos, onde passou a fazer apresentações de showball (partidas amistosas com ex-jogadores consagrados). Após alguns meses, cansou-se das apresentações (“tinha que correr muito e eu já estava com certa idade”) e voltou para o Brasil, quando retomou a cadeira na CMSP.

Uma das jogadas do vereador Zé Maria acabaria garantindo, três décadas depois, a construção do estádio do Corinthians, o Itaquerão, palco da abertura da Copa do Mundo de 2014. Zé conta que o prefeito Jânio Quadros (que assumiu em 1986) havia tomado o terreno cedido ao Corinthians, e só aceitou devolvê-lo ao clube após um movimento que reuniu diversos vereadores corintianos para pressionar Jânio. A decisão foi comemorada com o lançamento da pedra fundamental no terreno.

Ao terminar o mandato, Zé lançou-se candidato à reeleição, por insistência dos colegas, mas diz que quase não fez campanha e não se importou quando foi derrotado. “A política não entrou no meu sangue”, explica. O que entrou por suas veias é seu trabalho atual como assistente de direção da gerência de esportes na Fundação Casa (antiga Febem), onde trabalha há 14 anos tentando usar a bola para mudar o rumo de vidas. “O esporte deu vida para mim. Acho que o esporte é uma alavanca positiva para a sociedade”, diz.

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O então vereador durante a Constituinte Municipal, em 1990

Acervo CMSP

O então vereador durante a Constituinte Municipal, em 1990 – Acervo CMSP

Craque perneta

Diante da bola, Antonio José da Silva Filho, o Biro-Biro, 59 anos, era polivalente. Volante de origem, atuou como meia e atacante, marcando mais de 70 gols pelo Corinthians nos dez anos em que jogou no clube, entre 1978 e 1988. Quando partiu para o time dos engravatados, não mostrou a mesma habilidade. “Como vereador, fui um perna-de-pau”, confessa.

"Na política, fui um perna-de-pau" Biro-Biro

“Eu nem queria sair candidato. Política não tinha nada a ver comigo”, lembra Biro-Biro. Ainda assim, no ano em que chegou ao Parque São Jorge, uma brincadeira mostrou que o nome do jogador podia faturar nas urnas. Numa época em que os votos de protesto estavam na moda, cerca de 80 mil pessoas escreveram “Biro-Biro” nas cédulas para os votos ao Senado. O talento no futebol, o apelido engraçado e a figura curiosa, com os cabelos encaracolados e tingidos de louro, transformaram o corintiano numa figura muito popular. “Onde eu vou tem Biro-Biro. As pessoas colocam meu nome em tudo, até em gato, cachorro”, conta.

Velho cartola da política, Paulo Maluf sabia do potencial político de Biro-Biro e resolveu convidá-lo a sair candidato pelo PDS, por intermédio de Vicente Matheus, presidente do Timão e tio da esposa do jogador. O atleta não queria, os amigos insistiram e ele foi “para ver como era”. Eleito com 39.198 votos em 1988, teve dificuldade para cumprir os primeiros anos de seu mandato, porque ainda estava na ativa como jogador, na Portuguesa. “A cada seis meses eu pedia licença de um mês para poder me dedicar ao time. Queria continuar jogando até o final da minha carreira”, relembra. Isso durou quase o mandato todo. “Só no final comecei a frequentar mais e participar das votações.”

Comprou brigas com o PDS, por se recusar a votar como o partido pedia, e foi para o PMDB, a convite do corintiano e futuro governador Luiz Antonio Fleury Filho. Sem paciência para negociações partidárias, Biro procurava seu próprio jeito de ajudar as pessoas – inclusive com ações que hoje seriam consideradas ilegais. “Naquela época, a gente podia dar cesta básica no gabinete. Eu conseguia com uns amigos que tinham mercado e até tirei do meu bolso para ajudar”, conta. “A gente via o sofrimento do pessoal que passava fome. Eu pensava no benefício do povo”, justifica.

Biro conta que não voltou mais a se candidatar, mas se manteve próximo aos políticos, atuando como assessor de parlamentares. Saiu do único mandato com uma certeza: “A política não é para mim”.

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Ademir com João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart, na CMSP - Equipe de Eventos/CMSP
Ademir com João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart, na CMSP

Equipe de Eventos/CMSP

Ademir com João Vicente Goulart, filho do ex-presidente João Goulart, na CMSP – Equipe de Eventos/CMSP

Divino vereador

Depois de dois corintianos, foi a vez de um palmeirense chegar ao Palácio Anchieta. Mas o próprio Ademir da Guia, hoje com 76 anos, sabia que era uma zebra no campeonato eleitoral. “Eu não tinha esperança de vencer”, lembra o jogador. Quando aceitou o convite do ministro Aldo Rebelo para disputar as eleições municipais de 2004, pensava apenas em ajudar outra candidata do PCdoB, Nádia Campeão. Mas o resultado das urnas mostrou a Ademir que não apenas o futebol é uma caixinha de surpresas: ele foi eleito com 27.541 votos, enquanto a favorita Nádia ficou como suplente.

"Procurei ser uma pessoa correta" Ademir da Guia

Um resultado que não deveria ser tão surpreendente, já que Ademir é um dos maiores ídolos da torcida alviverde. Filho de Domingos da Guia, considerado um dos maiores zagueiros da história, Ademir jogou 900 partidas e marcou 153 gols pelo Palmeiras, entre 1961 e 1977, sendo cinco vezes campeão paulista e pentacampeão brasileiro. Chamado de Divino, conquistou os gramados com um estilo sereno e elegante, que foi cantado em prosa e verso por cronistas, escritores e até pelo poeta João Cabral de Mello Neto.

Como seus dois antecessores, da Guia também se desentendeu com seu time na Casa e trocou o PCdoB pelo PR. Mesmo assim, afirma não ter tido grandes dificuldades para se adaptar ao jogo do Palácio Anchieta. “Não é fácil conviverem 55 pessoas, cada uma pensando de um jeito, e chegar num acordo. Mas fiz muitas amizades, tanto com os partidos da oposição, como da situação”, lembra. No meio do campeonato, tropeçou em denúncias de corrupção, que foram arquivadas pela Corregedoria da Casa. “Procurei ser sempre uma pessoa correta”, afirma Ademir, que diz não guardar mágoas da sua passagem pela Câmara.

Entre as leis que conseguiu aprovar, está a 14.886, de 2009, conhecida como “lei antitrombada”, que obriga a colocação de uma faixa sinalizadora em vitrines e outras peças de vidro, para evitar que as pessoas batam contra elas.

O craque tentou prosseguir na carreira política ao concorrer à reeleição para vereador em 2008, mas foi uma bola fora. Tentou disputar outros dois campeonatos, um para deputado estadual, em 2014, e outro novamente para o cargo de vereador, em 2016, mas não chegou a se classificar.

ENTREVISTA | Zé Maria

José Maria Rodrigues Alves, o Zé Maria ou Cavalo de Aço – Foto: Fábio Lazzari/CMSP

Você foi um bom vereador?

Dentro do que pude fazer, com certeza. Trabalhei muito. Fiz o trabalho que normalmente não aparece, junto à comunidade. Depois que saí, voltei a ter relacionamentos nos bairros onde fui e as pessoas diziam: “Você foi legal, precisamos de gente como você, simples, humilde, que atende a todo mundo”. Aprendi muito e saí de cabeça erguida.

Como vê o futebol hoje?

Hoje, é muito mais para o lado físico. Antigamente a técnica se sobrepunha. Tinha o Gerson, que dava lançamento não sei de onde; o Rivelino, que brincava; tinha o Dias, que era desse tamaninho… um Dias hoje não passava nem na seletiva, porque os caras não querem mais zagueiro pequeno. E tem a exportação. Acho importante o jogador ir para fora, porque traz essa cultura de lá, mas perde um pouco da nossa essência.

Como lidou com o racismo no futebol?

Na minha época, era comum te chamarem de negro sujo, preto safado, mas eram os corneteiros que xingavam todo mundo. Você pegava aquilo e jogava dentro de campo. “Ah, é? Vocês vão ver o negrão como é que é”. Mexia com o brio. Hoje é um xingamento diferenciado, mais voltado para esse lado de racismo, que o cara leva para diminuir o jogador. Nunca senti isso na rua, com a família. Pelo contrário. Em Botucatu, tinha um clube que negrão não frequentava. Quando voltei da Copa, recebi homenagem do clube.

ENTREVISTA | Biro Biro

Autoanálise – “Política não tinha nada a ver comigo”, diz Biro-Biro – Foto: Gute Garbelotto/CMSP

Na política, você foi um craque ou…

Eu fui um perna-de-pau. Teve coisas que tentei fazer, depois vi que não conseguia, porque briguei com meu partido. Os políticos não pensam no povo que está precisando, eles querem brigar. Tem projeto que sabe que vai ser bom, mas não vai votar porque é do PMDB, é do PT. Eu olhava a fundo se o projeto era bom e ia ajudar o povo. Se fosse bom, eu votava nele. Isso cria uma confusão dentro do partido. Se eu estivesse ainda na política, estaria trocando de partido para partido.

Como vê a situação do futebol hoje no Brasil?

O futebol em si está fraco em relação ao de um tempo atrás. O futebol brasileiro depende muito de lançar alguns jogadores, e quando lança eles vão embora, como foi com aquela rapaziada do Santos. O futebol deu uma caída em relação a craque e futebol bonito. A gente vê uns jogos truncados, feios, ganha de um a zero. Por incrível que pareça, lá fora está mais bonito do que o futebol brasileiro.

Falta liberdade na política e no futebol?

Acho que sim. Aquela liberdade de estar solto, seja no futebol e na política. Se tem um projeto que é bom, você vai votar contra porque é de outro partido? Sou contra essa mentalidade. Quem vai ganhar com isso é o povo. No futebol, quem vai ganhar é o torcedor. Se eu for até o meio, driblar, fizer gol, der chapéu, passar embaixo da perna, a torcida vai gostar. Mas hoje não tem mais a liberdade de fazer isso.

ENTREVISTA | Ademir da Guia

“Na minha passagem na política, fiz muitos amigos”, diz o jogador – Foto: IV5

Como foi a experiência de vereador?

Você sempre aprende alguma coisa. Fizemos uns 70 projetos de lei, mas poucos passaram. “A cidade de São Paulo”, me falou uma vez um prefeito, “tem 55 vereadores. Se todo vereador quiser aprovar um projeto a cada três meses, a cidade não vai comportar tantas leis naquelas que já tem”. Alguns, que são mais importantes, passam. Tudo isso a gente assimilou e aprendeu.

O senhor foi um bom vereador?

O vereador tem que tentar de alguma forma trazer boas coisas para a cidade. Tudo o que vai fazer precisa de uma maioria. Por isso, o vereador procura fazer tudo em conjunto. Tem que ter apoio dos colegas. A finalidade é melhorar uma cidade como São Paulo, que cresce muito e tem vários problemas.

Tem alguma mágoa?

Não guardo mágoas. Na minha passagem na política, fiz muitos amigos e procurei ser sempre uma pessoa correta. Às vezes a gente é mal compreendido, mas procuro fazer aquilo que posso e sei.

Como vê o futebol brasileiro hoje?

O futebol se modernizou muito. Os jogadores não são mais presos ao clube, como nós éramos. O futebol em si, no passado, tinha mais craques. Era um futebol mais bonito. Hoje não temos mais os pontas. Tínhamos só um volante. Hoje tiram o meia e jogam mais volantes. Um exemplo claro é o do Ganso, que é um craque, mas às vezes fica de fora porque o esquema faz com que o jogo seja mais de marcação.

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