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Ponto de recomeço

Câmara analisa políticas públicas voltadas aos refugiados e imigrantes que buscam uma vida melhor em São Paulo
Tempo estimado de leitura: 6 minutos

Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br
Colaborou Renata Oliveira | renata.olliver@live.com

Publicada originalmente em jul-dez/2017 – edição nº25

Vindos de todas as partes do mundo, há muito tempo os estrangeiros chegam à cidade de São Paulo para ficar, deixando sua cultura e descendentes. O fluxo não para. A Missão Paz, entidade ligada à Igreja Católica que ajuda estrangeiros recém-chegados, atendeu 2.215 pessoas no primeiro semestre deste ano. Em 2016, foram 8.376 atendimentos (4.410 no primeiro semestre); em 2015, 6.929. Segundo a Polícia Federal, atualmente cerca de 400 mil estrangeiros vivem no Município. Mas esse número pode ser maior, pois muitos vêm de forma clandestina.

Esse contingente pode ser de imigrantes, de pessoas que saíram do país onde viviam por decisão própria, ou de refugiados, que tiveram de deixar sua terra porque corriam riscos. Esses últimos podem ser vítimas de conflitos armados, violência generalizada e violação massiva dos direitos humanos ou de perseguições motivadas por questões ligadas a raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em grupos sociais.

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A haitiana Roselaure Jeanty denunciou que estrangeiros são escravizados no Brasil.
SENZALA - A haitiana Roselaure Jeanty denunciou que estrangeiros são escravizados no Brasil

Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Apesar de São Paulo ser uma cidade de imigrantes, há pessoas que não veem com bons olhos os recém-chegados, que acabam lidando com ignorância, preconceito, desrespeito e até violência física. De acordo com a secretária-geral da União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH), Roselaure Jeanty, os imigrantes e refugiados, mesmo com diploma de cursos superior, só conseguem emprego na faxina ou na construção civil. Segundo a haitiana, os recém-chegados são explorados principalmente por não falar português e não conhecer as leis trabalhistas. “Estamos no século 21, mas essas situações degradantes lembram o tempo da senzala”, denunciou Jeanty, que vive no Brasil há quatro anos.

Para investigar situações como essas, a CMSP instalou em 1º de fevereiro deste ano uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para averiguar a política de migração e medidas necessárias para o seu aperfeiçoamento. “Nossa cidade foi formada por imigrantes, recebê-los bem é fundamental”, afirma à Apartes o vereador Eduardo Suplicy (PT), que propôs a criação da comissão e foi eleito seu presidente.

Em quatro meses, os vereadores da CPI trataram de diversos temas relacionados aos estrangeiros e fizeram uma visita à feira boliviana, realizada aos domingos na Rua Coimbra, no Brás. A Comissão também ouviu representantes da Prefeitura e de organizações que trabalham no acolhimento dos imigrantes e refugiados.

NOVOS ARES – Anas Obaid fugiu da guerra na Síria e agora tem uma loja na Mooca – Foto: Ricardo Rocha/CMSP

AULAS NO KARAOKÊ

Um dos refugiados no Brasil é Anas Obaid, sírio de 30 anos que chegou ao País em 2015 e já se sente paulistano. “São Paulo é minha cidade, já sei andar nela”, conta, orgulhoso. Sua jornada começou em Damasco, capital da Síria, onde estudava Jornalismo e trabalhava em uma TV do governo. Preso por membros do grupo terrorista Estado Islâmico, só foi solto após sua família pagar, segundo ele, “muito dinheiro”. Após sua libertação, recebeu ameaças e teve de deixar o país, que enfrenta uma guerra civil.

Obaid foi para o Líbano e de lá veio para o Brasil, o único país que lhe abriu as portas. “Escolhi morar em São Paulo por ser uma cidade grande e ter muitas oportunidades de trabalho”, diz. Na capital, começou a aprender português, principalmente nos karaokês, onde gosta de cantar músicas brasileiras como Ai se eu te pego (“Nossa, nossa/Assim você me mata”), de Michel Teló. O esforço deu certo e ele já fala bem a língua, com sotaque árabe.

Atualmente, Obaid tem uma pequena loja em uma galeria na Rua da Mooca, no bairro Mooca, onde vende produtos sírios, como perfumes (que ele mesmo fabrica), kefiés (lenços árabes tradicionais) e bolsas de couro.

https://www.facebook.com/RevistaApartes/videos/1237129629725982/

Nem todos, porém, são tão bem recebidos na nova terra. O diretor-presidente do Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus), Marcelo Haydu, explica que alguns brasileiros não gostam dos estrangeiros por falta de informação e se baseiam nos estereótipos. “Se o imigrante vier de um país de origem muçulmana, acham que é terrorista; se vier da África, é traficante de drogas”, afirma Haydu à Apartes. “É o contrário, os refugiados estão fugindo dos terroristas e dos traficantes”, ressalta. “Infelizmente há muito preconceito.”

O diretor ressalta que os refugiados não são criminosos. Uma das condições para que uma pessoa tenha seu pedido de refúgio reconhecido no Brasil é não ter cometido crime em seu país de origem ou em qualquer outro local, esclarece. Segundo Haydu, uma das formas de diminuir a violência é acabar com o preconceito e com a desinformação. Por isso, o Adus tenta mostrar aos brasileiros a cultura dos estrangeiros. O instituto oferece aulas de árabe, francês e espanhol, além de cursos de gastronomia com pratos típicos dos outros países, e utiliza os imigrantes como professores.

Para inserir o estrangeiro na sociedade brasileira, o instituto promove aulas de português, cursos de qualificação profissional, palestras sobre empreendedorismo, feiras de artesanato, apoio psicológico, campeonatos de futebol e outras atividades.

VITÓRIA – Seleção de refugiados do Congo foi campeã no 3º Campeonato Multicultural, promovido pela Adus – Foto: Antônia Souza/Adus

POLÍTICAS PÚBLICAS

São Paulo foi a primeira cidade brasileira a ter uma política específica para a questão dos estrangeiros. Em 2016, a Câmara Municipal aprovou um projeto enviado pelo Executivo e instituiu a Política Municipal para a População Imigrante. Seus principais objetivos são garantir ao imigrante o acesso a direitos sociais e aos serviços públicos; promover o respeito à diversidade e à interculturalidade;  impedir violações de direitos; fomentar a participação social e desenvolver ações coordenadas com a sociedade civil.

A CPI da Migração foi criada para ajudar a analisar como essa política está sendo implementada e levantar mais informações sobre a situação dos imigrantes e dos refugiados na cidade. Para Suplicy, foi uma comissão diferente das demais CPIs, que geralmente começam a partir de uma denúncia. “Queríamos saber como estão vivendo os imigrantes e refugiados e como podemos ajudá-los”, afirma o vereador.

"Nossa cidade foi formada por imigrantes, recebê-los bem é fundamental" Vereador Eduardo Suplicy

O padre Paolo Parise, um dos coordenadores da Missão Paz, criticou a falta de medidas que ajudem os estrangeiros quando eles deixam as casas de acolhimento. “Faltam políticas para que possam arrumar moradia digna, abrir conta bancária, ter um emprego decente e aprender a língua portuguesa”, apontou durante uma sessão da CPI.

A questão bancária também foi destacada pelos integrantes da comissão. Como os imigrantes e refugiados têm dificuldades em abrir contas, guardam o dinheiro que conseguem em casa, chamando a atenção de bandidos. Suplicy se lembrou de um caso de 2013, quando ladrões invadiram a residência de uma família boliviana e mataram, com um tiro na cabeça, o menino Brayan Yanarico Capcha, de 5 anos, porque ele, assustado, chorava no colo da mãe.

A burocracia para conseguir a validação dos diplomas de curso superior é outro entrave muito prejudicial aos imigrantes, que têm dificuldades em conseguir emprego para os quais estão preparados.

"A cidade como um rico espaço de convivência e interação é estimulante para todos nós" Vereador Fábio Riva

Na avaliação do relator da CPI da Migração, vereador Fábio Riva (PSDB), após quase cinco meses de reuniões foi possível chegar a um consenso, com propostas amplas e que abrangem praticamente todas as necessidades apresentadas. Ele defende que haja uma acolhida melhor aos estrangeiros e mais inserção na sociedade.

A boliviana Mônica Rodriguez, no Brasil há 13 anos, gostou do relatório. Em entrevista ao portal da CMSP, ela reconhece que “no papel, está ótimo”, porém ressalta que “nós, imigrantes, temos de acompanhar e cobrar”. “Espero que a CPI seja o primeiro passo”, diz Rodriguez.

Enquanto as soluções não chegam, os estrangeiros vão levando a vida, conhecendo os hábitos da cidade e se tornando paulistanos. Quando indagado se pretendia voltar para a Síria quando a guerra civil acabar, Anas Obaid sorri: “só para visitar. Gosto muito do Brasil e dos brasileiros, que têm um coração maravilhoso”. Para ele, “é como se fossem dois amores: a Síria é minha mãe e São Paulo, a minha esposa”.

PRINCIPAIS PROPOSTAS DA CPI

  • Parcerias com órgãos estaduais, federais e com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur)
  • Rede de acolhimento, valorização e integração dos imigrantes
  • Acesso dos refugiados ao Sistema Único de Saúde (SUS)
  • Qualificação dos profissionais da rede pública para atender os imigrantes
  • Centros de convivência para imigrantes em situação de rua
  • Mapeamento dos serviços e locais mais acessados pela população imigrante
  • Formalização da situação bancária
  • Combate à violência contra mulheres
  • Espaços de recreação e lazer para a integração sociocultural
  • Regulamentação das feiras de artesanato
  • Mais cursos de português
  • Menos burocracia para validação de diplomas

COMPOSIÇÃO

Presidente: Eduardo Suplicy (PT)
Vice-presidente: Fernando Holiday (DEM)
Relator: Fábio Riva (PSDB)
Demais membros: Caio Miranda Carneiro (PSB), Gilberto Nascimento (PSC), Noemi Nonato (PR) e Soninha (PPS)

SAIBA MAIS

Documento
Relatório da CPI da Política de Migração. www.saopaulo.sp.leg.br/comissao/comissoes-encerradas/cpi-da-politica-de-migracao

Sites
Instituto de Reintegração do Refugiado (Adus). www.adus.org.br
Missão Paz. www.missaonspaz.org
Coordenação de Políticas para Migrantes da Prefeitura de São Paulo. www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/direitos_humanos/migrantes

Reportagem
Fábricas de suor e sofrimento. Gisele Machado, 2017, Apartes. Disponível em www.saopaulo.sp.leg.br/apartes/revista-apartes/numero-24-mar-jun2017/no24-direitos-humanos

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