Saúde

Pragas da cidade

Animais que matam e espalham doenças estão cada vez mais adaptados à vida urbana. Ações tentam controlar as infestações
Tempo estimado de leitura: 11 minutos

Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br

Publicada originalmente em fevereiro de 2016 – ed. nº 18 – atualizada em abril de 2022

Elas estão em toda parte. Dentro da sua casa e na de todos que você conhece. Nos hotéis onde você se hospeda e nos mercados onde faz compras. Embaixo dos seus pés, em esgotos onde vivem milhões de baratas capazes de transmitir um catálogo de doenças que vai de herpes a hanseníase. Podem estar na sua cama, onde percevejos se abrigam para furar sua pele e beber seu sangue enquanto você dorme. Ou dentro dos seus sapatos, um dos abrigos preferidos dos pequenos escorpiões-amarelos, que carregam veneno suficiente para matar crianças ou idosos com uma só picada. E também podem vir dos céus, na forma de simpáticos pombos, que tanta gente gosta de alimentar, mas que são fontes de ácaros e infecções pulmonares.

São chamadas de pragas urbanas, ou de animais sinantrópicos: seres que convivem com os humanos a despeito da nossa vontade. E que vivem muito bem, obrigado, graças às boas condições que eu e você fornecemos gratuitamente para elas, na forma de água, alimento, abrigo e acesso – os chamados “4 As”. O avanço da civilização não as repele, pelo contrário: quanto mais progresso material, mais elas proliferam.

“As pragas urbanas existem desde os primórdios da civilização, usufruindo da hospitalidade inocente do homem”, afirma o biólogo Francisco Zorzenon, parando por um momento de examinar no microscópio um fragmento de árvore, em um laboratório do Instituto Biológico (vinculado à Secretaria Estadual da Agricultura), onde atua como diretor técnico da Unidade Laboratorial de Referência em Pragas Urbanas. O pedaço de madeira pertence a um tronco que tombou uma semana antes, no interior de São Paulo, matando duas pessoas. Sobre o fragmento, uma festa de bichinhos brancos que se movem sem parar: são cupins.

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Zorzenon, do Instituto Biológico, observa tronco de jacarandá destruído por cupins
Zorzenon, do Instituto Biológico, observa tronco de jacarandá destruído por cupins | Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Quando a humanidade formou as cidades, fez a alegria de um número incalculável de espécies, que encontraram nesses locais a sua Terra Prometida. Sabe como é, viver na natureza não é fácil: além de precisar disputar a tapa cada oportunidade de comida e abrigo, os animais precisam fugir de predadores que estão sempre à espreita. Nas cidades, é bem diferente. “Num ambiente artificial, as edificações servem de abrigo, o lixo que a gente gera fornece alimento em abundância e muitos predadores são eliminados”, explica Zorzenon. Comparados a seus parentes dos ambientes naturais, as pragas urbanas levam uma vida de pura ostentação.

É como se, na história da evolução, as pragas urbanas fossem a outra face do mesmo processo que, após milhares de anos, transformou lobos mortíferos e felinos selvagens nos cães e gatos que hoje rendem tantos likes nas redes sociais. Da mesma forma, vários dos animais sinantrópicos se adaptaram tão bem à vida sob o nosso teto que, após anos de seleção natural, transformaram-se em novas espécies, tão urbanas quanto um congestionamento. Não dá para achar, por exemplo, uma barata de esgoto em ambiente silvestre: a Periplaneta americana só existe nas cidades.

CIVILIZADOS E GLOBALIZADOS

Considerado o inimigo número um entre as pragas urbanas da cidade de São Paulo, o mosquito Aedes aegypti também não é chegado numa natureza. Para depositar seus ovos, a fêmea gosta de recipientes artificiais, feitos de materiais como plástico e borracha. “A industrialização deu mais condições para o mosquito se desenvolver”, explica Alessandro Giangola, biólogo da Coordenação da Vigilância em Saúde (Covisa) da Secretaria Municipal da Saúde e coordenador-geral das ações de controle do Aedes na cidade de São Paulo.

Giangola conta que o mosquito se deu bem com a crise hídrica, que levou muita gente a comprar caixas d’água e cisternas sem o cuidado de lavá-las e fechá-las adequadamente. Pior: nos últimos anos, o Aedes aegypti, que tradicionalmente só conseguia se reproduzir no auge do verão, evoluiu geneticamente ao ponto de conseguir circular também nas temperaturas mais amenas, conforme apontou uma pesquisa do Instituto Butantan, órgão do governo estadual.

Com cada vez mais mosquitos picando em mais dias do ano, o resultado foi uma explosão nos números da dengue (veja gráfico abaixo). E este nem é o único perigo: o Aedes aegypti também é capaz de transmitir zika, febre amarela e chikungunya. Mas, segundo Giangola, ainda não há registro de transmissão dessas outras doenças em território paulistano.

“O Aedes aegypti é hoje o nosso principal alvo”, diz o biólogo. Para combater seu maior adversário, a Prefeitura de São Paulo ganhou, em 2015, uma nova arma: a Lei 16.273, nascida de um projeto do então vereador Paulo Fiorilo (PT), que, entre outros pontos, autoriza os agentes sanitários a entrarem à força em imóveis particulares, quando o proprietário estiver ausente ou se recusar a recebê-los.

Fiorilo propôs lei que autoriza entrada à força em imóveis para combater a dengue | Foto: Mozart Gomes/CMSP

“Na maioria dos casos há grande participação e colaboração dos cidadãos, porém há situações excepcionais em que a única maneira de evitar o combate é o ingresso forçado em imóveis que são potenciais criadouros do mosquito”, aponta Fiorilo na justificativa do projeto.

Do mesmo jeito que a industrialização impulsionou a carreira meteórica do Aedes, a globalização ajudou a disseminação de outro inimigo: os percevejos-de-cama (Cimex lectularius), que se espalharam pelos quartos de hotéis de várias partes do mundo. Medindo poucos milímetros, conseguem passar despercebidos ao pegar carona nas malas dos viajantes e quando estão escondidos nos lençóis do quarto, esperando o hóspede adormecer para se alimentar do seu sangue. “O número de percevejos em hotéis aumentou muito após a Copa do Mundo”, aponta Francisco Zorzenon. De novo, a civilização e seus avanços tecnológicos se revelam aliados das pragas.

INOCENTE? SABE DE NADA

Se quem vê cara não vê coração, o mesmo também vale para penas e patas, antenas e carapaças. Tanto o asco que nos repele como a simpatia que nos aproxima de alguns bichos têm pouca relação com os riscos que eles, de fato, representam. Segundo Zorzenon, não há razão, por exemplo, para temer mais baratas do que formigas.

“A formiga é um inseto que faz a gente baixar a guarda, e isso pode ser um problema”, diz o biólogo. É verdade que é mais provável encontrar microrganismos causadores de doenças em baratas, por causa dos ambientes sujos que elas frequentam, mas isso não é uma regra. Mesmo as inocentes formigas-doceiras das cozinhas (as Tapinoma melenocephalum, que apesar do apelido consomem vários tipos de alimentos além de doces) podem carregar as piores doenças, se antes de chegar ao seu alimento tiverem passeado em latas de lixo, banheiros ou mesmo na ferida de um doente. As inocentes formigas, aliás, representam um sério risco de infecção hospitalar. Sem falar das espécies que curtem fazer ninhos dentro de tevês e computadores, onde liberam ácidos que destroem os aparelhos.

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Formigas, tanto quanto baratas, podem carregar bactérias muito perigosas | Foto: Ricardo Rocha/CMSP

O pombo é outro bicho que, de inocente, só tem a cara. “Eles são mais tolerados que os ratos, embora sejam transmissores de doenças tão ou mais importantes do que as transmitidas pelos roedores”, afirma Zorzenon. Nos sótãos, forros e outras partes das nossas casas que essas aves transformam em suas, as fezes acumuladas levam à proliferação de fungos que podem causar doenças respiratórias graves, como a criptocose, que afeta o sistema nervoso central.

Lei criada a partir de projeto de Natalini (foto) multa quem alimentar pombos | Foto: Gute Garbelotto/CMSP

São perigosos, mas também são fofos. Graças a essa fofura, os pombos vivem comendo de graça por conta dos que adoram jogar milho e outros restos de alimento para eles. “Os pombos despertam a simpatia de algumas pessoas, que os alimentam rotineiramente, levando à explosão de sua população. Este comportamento deve ser reprimido a bem da coletividade e saúde pública”, afirmou o então vereador Gilberto Natalini (PV) na justificativa do Projeto de Lei que deu origem à lei 16.914/2018. A norma estabelece multa de R$ 200 para quem alimentar pombos, valor que dobra em caso de reincidência. “Esse é um projeto maravilhoso e de crucial importância para a educação do povo”, elogia Zorzenon.

Já o biólogo Gladyston Carlos Vasconcelos Costa, da Subgerência de Vigilância, Prevenção e Controle da Fauna Sinantrópica (Susin) do Centro de Controle de Zoonoses (CCZ) da Prefeitura de São Paulo, acha difícil fiscalizar a aplicação de uma lei como essa. “Já conversei muito com alimentadores de pombo e não é fácil (convencê-los)”, diz. Ele conta a história de uma senhora, d. Adélia, que jogava na frente de casa resto de arroz, que, além de virar comida de pombo, tornava a calçada escorregadia e provocava quedas em quem passava. “Foram seis meses de conversa, e ela só repetia que pombos são animais sagrados, de Deus. Só parou de alimentá-los porque morreu.”

DOENÇAS DE RICO E POBRE

Duas graciosas deusas nuas esculpidas em bronze pelo modernista Victor Brecheret, as Graças enfeitam os corredores de mármore da Galeria Prestes Maia, no Vale do Anhangabaú, centro de São Paulo. Com o local fechado, os únicos espectadores dessas obras de arte são os ratos. “Tem atividade deles aqui”, constata o biólogo Gladyston Costa, da Zoonoses, observando pedacinhos escuros de fezes deixados pelos roedores em uma escada rolante desativada, próxima às deusas de bronze.

Gladyston Costa injeta veneno para ratos, próximo ao Viaduto do Chá | Foto: Fausto Salvadori/CMSP

Numa manhã de sábado, em novembro de 2015, a galeria é um dos pontos que ele e um estagiário da Zoonoses, Lucas Daminello, visitam em uma ação para combater uma infestação dos roedores que toma conta do Anhangabaú. “Não tem comida perto da escada. Por que acha que estão aqui?”, pergunta Costa, observando que um dos “4 As” está ausente naquele trecho. “Superpopulação. Devem ter vindo de um ninho próximo”, responde o estagiário. A população de roedores é tão grande que cria suas próprias periferias.

Vestindo luvas e jalecos, a dupla circula pela Galeria Prestes Maia e pelo subsolo do Edifício Matarazzo, sede da Prefeitura de São Paulo, deixando caixas de plástico com iscas recheadas de veneno. A ação da substância é lenta, para que o rato morra bem longe do alimento envenenado e os demais roedores não façam a associação entre as iscas e a morte do companheiro.

O trabalho da Zoonoses é feito em parceria com as Supervisões de Vigilância em Saúde (Suvis), espalhadas pela cidade. No combate aos roedores, segue as normas do Programa de Combate à Proliferação de Ratos, criado em 2007 pela Lei 14.430, do então vereador Zelão.

Enquanto deixa as iscas, Costa observa rastros amarelados que os corpos dos ratos, cobertos de gordura, deixaram nas paredes brancas e constata que estão todos perto do chão. “Nenhuma atividade pelo alto”, diz. Significa que a infestação de hoje é uma exclusividade dos Rattus norvegicus, as ratazanas de esgoto, grandes como gatos e principais transmissoras da temida leptospirose. Não há sinal dos ratos-de-telhado (Rattus rattus), que podem subir por fios, escalar muros e entrar pelas janelas do apartamento.

Pobre ou rico, ninguém está livre de um encontro com esses bichos. Há alguns anos, num condomínio recém-construído da zona leste de São Paulo, com apartamentos no valor de até R$ 1,3 milhão, os moradores foram surpreendidos, logo após a mudança, ao encontrar ninhos de ratos-de-telhado em suas varandas gourmet. “Descobrimos que a construtora havia cometido vários erros, como deixar que os operários jogassem resto de alimento nos andares e não tampar ramais de esgoto nos subsolos”, conta o síndico Marcos Burti. A infestação só foi resolvida com a contratação de uma empresa de manejo de pragas.

No entanto, ainda que estejam presentes em toda a cidade, é nos bairros mais pobres que os ratos provocam os maiores estragos. Misturada à água das enchentes, a urina dos roedores dissemina a leptospirose, doença que mata tanto quanto a dengue, mesmo atingindo um número bem menor de pessoas (veja gráfico acima). Por que essas mortes causam menos comoção do que as vítimas do Aedes? É uma boa pergunta. Uma possível resposta é dada por um técnico da Prefeitura, em tom reservado: “Porque a lepstopirose só mata pobre, enquanto a dengue também atinge os bacanas”.

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Gladyston Costa, da Zoonoses: doença causada por rato mata tanto quanto dengue | Foto: Marcelo Ximenez/CMSP

GIGANTE, BRANCA E BANDIDA

O biólogo Randy Baldresca mergulha uma pinça num vidrinho de formol e de lá retira o cadáver de um escorpião-amarelo, com aproximadamente cinco centímetros. “É um Tityus serrulatus”, apresenta. A espécie é considerada uma das mais venenosas da América do Sul. Nas histórias de picadas de escorpião que terminam em morte, geralmente de idosos ou crianças com menos de 14 anos, o vilão costuma ser um serrulatus – animal cada vez mais presente por aqui. “As infestações de escorpiões vêm aumentando na cidade de São Paulo”, alerta Baldresca.

Dos animais dotados de veneno, chamados peçonhentos, o escorpião foi o que se deu melhor ao trocar o campo pela vida agitada das cidades. Costuma ficar atrás apenas das cobras na lista dos campeões de ataques a seres humanos compilada pelo Ministério da Saúde. Hoje, três em cada quatro ataques de escorpiões ocorrem em ambiente urbano, segundo estudo do Instituto Butantan.

O segredo do sucesso dos escorpiões nas cidades é o mesmo de todo sinantrópico: estão livres de predadores e têm um fornecimento abundante da sua comida preferida – no caso, as baratas. Lugar para morar também não é problema. Fazem suas casas em esgotos, armários, caixas de eletricidade, forros. E o mais assustador: adoram entrar num calçado.

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Picada do escorpião-amarelo pode matar crianças e idosos | Foto: Gute Garbelotto/CMSP

Baldresca chama seu escorpião-amarelo de Gigante. “A gente costuma dar nome aos bichos aqui”, conta o biólogo. Nos armários da Biópolis, empresa de controle de pragas urbanas que criou há 14 anos, ele guarda uma coleção de troféus que encontrou em suas andanças profissionais. Além de Gigante, o escorpião, constam da lista: Branca (uma ratazana), Bandida (uma aranha), ovos de urubus e ninhos gigantescos de cupins. “Sou o biólogo mais feliz do mundo. Meu trabalho é meu prazer”, diz.

Na coleção de Baldresca, a maioria das peças tem relação com os cupins, a praga urbana que mais causa danos materiais. Entre as vítimas desses bichinhos que ele guarda nas prateleiras, estão o pedaço esburacado de um dormente de estrada de ferro, sapatos, malas, roupas, câmeras fotográficas e uma série de páginas desmanchadas que já foram a tese de doutorado de uma professora da Universidade de São Paulo (USP).

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Biólogo Randy Baldresca retira ninho de cupins de um apartamento | Foto: Arquivo pessoal

Cupins se alimentam da celulose presente em madeira, papel e tecido, mas a destruição que provocam vai muito além desses materiais. É que, para chegar à sua fonte de alimento, vão consumindo tudo o que encontram pela frente, seja instalações elétricas, paredes ou lajes de concreto. O principal destruidor é o cupim subterrâneo (Coptotermes gestroi), que pode se espalhar pelas edificações, criando ninhos satélites interligados à colônia principal, cada um deles habitado por até 5 milhões de bichinhos devoradores. A mesma espécie também é a principal responsável por quedas de árvores. “A velocidade de reprodução dos cupins é muito grande. A rainha coloca um ovo a cada dois segundos”, afirma o biólogo.

Se tem uma promessa que Baldresca não faz aos seus clientes é a de eliminar as pragas urbanas de um local – simplesmente porque é impossível. “Controle de praga é apenas redução de probabilidade de ocorrência. Não posso dizer que um lugar estará livre de um animal”, explica.

SABE QUANDO?

No Anhangabaú, após colocar as iscas para os ratos, Gladyston Costa, da Zoonoses, veste uma máscara e, armado com uma bomba, vai em direção a três buracos que localizou na terra embaixo do Viaduto do Chá. São tocas de ratos. Ali, injeta um veneno em forma de pó branco que gruda no pelo dos roedores.

“Só colocar veneno não adianta”, ressalta o biólogo da Prefeitura. Ele conta que também faz parte do trabalho passar informações aos moradores, especialmente sobre o descarte correto do lixo, e, nas áreas mais críticas, acionar as Subprefeituras para ações como corte do mato e remoção de sujeira.

Serviço encerrado, Costa tira o jaleco e a máscara. Seu olhar faz uma panorâmica que abarca os edifícios abarrotados com milhares de pessoas circundando o Vale do Anhangabaú, no centro da mais populosa cidade da América Latina. “Imagina quanta comida não sai todo dia de cada um desses prédios”, diz ao estagiário. E solta uma previsão, baseada em longos anos de combate a esses pequenos animais, inimigos tão íntimos de todos os humanos. “Sabe quando a gente vai conseguir acabar de vez com esses bichos? Nunca.”

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