Texto: Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br
“Haverá nesta cidade e em cada uma das vilas um prefeito.” Era o que dizia a lei estadual número 18, que, em 11 de abril de 1835, criou “o emprego de prefeito” nos municípios paulistas.
Era uma mudança e tanto. Afinal, desde a criação da Câmara Municipal da vila de São Paulo de Piratininga, em 1560, os vereadores haviam reinado como autoridade única para todos os assuntos em terras paulistanas.
Por mais de dois séculos, os vereadores foram muito mais do que legisladores: assumiram papéis de prefeitos, juízes, ministros de Relações Exteriores, Banco Central e o que mais aparecesse. Cuidavam da administração municipal, julgavam questões judiciais, assinaram tratados internacionais de comércio com as vilas da América Espanhola, declararam guerras e ainda ditavam o valor da moeda local.
Por mais de dois séculos, os vereadores foram muito mais do que legisladores: assumiram papéis de prefeitos, juízes, ministros de Relações Exteriores, Banco Central e o que mais aparecesse.
Não que tivessem muita alternativa. Nos tempos do Brasil Colônia, os paulistanos estavam tão isolados que não conseguiriam se submeter às leis da metrópole portuguesa nem se quisessem muito, porque nem sabiam quais eram. Desprovidos de 5G, Wi-Fi ou mesmo de uma singela biblioteca, não tinham como ter acesso ao texto das Ordenações, conjunto de leis estabelecidas pelo poder real português para tratar do direito judiciário, administrativo, penal e civil. A Câmara Municipal só foi receber seu primeiro exemplar das Ordenações quando contava com quase um século de existência — e, mesmo assim, um único exemplar quase ilegível de tão estropiado.
O fato é que Portugal, interessado principalmente em explorar riquezas como cana-de-açúcar ou pedras preciosas, não estava nem aí para São Paulo, um lugarejo miserável que não tinha nada disso e, para piorar, ficava longe de tudo, a 780 metros de altura, no topo de uma Serra do Mar que funcionava como uma barreira que a maioria evitava percorrer.
Poeirenta e imperial
A situação começou a mudar em agosto de 1822, quando o príncipe regente português dom Pedro deixou a capital, no Rio de Janeiro, e subiu a serra para aplacar uma das constantes rebeliões promovidas pelos paulistas contra a autoridade central. Resolvido o problema, com a destituição de um governo contrário aos interesses do príncipe e a deportação dos rebeldes para a capital, dom Pedro ainda ficou mais alguns dias em terras paulistas, onde conheceu Domitila de Castro, a futura Marquesa de Santos, que se tornaria sua principal amante.
"uma cidadezinha poeirenta e pobre, onde as cobras atravessavam as ruas mal calçadas" Roberto Pompeu de Toledo em A capital da solidão.
Pois foi nessa cidade, em 7 de setembro, que a comitiva real de dom Pedro parou junto às margens plácidas do Riacho do Ipiranga para que o príncipe pudesse se aliviar da intensa diarreia que o perseguia ao longo do dia. Nesse momento, foram alcançados por dois emissários a cavalo. Eles traziam uma carta do Parlamento português informando que havia decretado a limitação do poder do príncipe regente, acompanhado de comentários escritos pela esposa de Pedro, Maria Leopoldina, e de José Bonifácio de Andrada e Silva, seu ministro e braço direito, ambos o aconselhando a tomar uma atitude imediata contra Portugal. O monarca de 24 anos não deixou por menos. Mesmo doente, arrumou forças para, do alto da mulinha que o conduzia, proclamar a independência do Brasil.
Pela importância que teve na Independência, São Paulo recebeu, no ano seguinte, o título de Cidade Imperial. Honrarias à parte, continuava a ser “uma cidadezinha poeirenta e pobre, onde as cobras atravessavam as ruas mal calçadas”, na descrição do jornalista Roberto Pompeu de Toledo em A capital da solidão.
A Câmara Municipal dividia espaço com a cadeia e o açougue, em um casarão assobradado no Largo de São Gonçalo (atual Praça João Mendes). As sessões de vereadores aconteciam no andar superior do casarão, enquanto os presos ficavam trancafiados no térreo e passavam o dia nas janelas das celas conversando com quem passava na rua.
Com a independência, a Câmara Municipal passaria por grandes mudanças, assim como o restante do País. “A monarquia brasileira, com o imperador dom Pedro I, precisou enfrentar o desafio de garantir a unidade nacional, já que havia profundas diferenças entre as províncias. Além disso, era preciso construir uma ideia de nacionalidade”, explica o historiador Ubirajara de Farias Prestes Filho, em Câmara Municipal de São Paulo: 450 anos de história.
Agora que o Brasil estava se organizando como nação independente, com um poder central sediado dentro do País, o governo passou a trabalhar para cortar as asinhas do poder majestoso assumido por algumas Câmaras Municipais, como a da Cidade Imperial.
Começou com a primeira Constituição Federal, imposta à força por dom Pedro em 1824, que instituía os Conselhos Gerais da Província, mais tarde chamados de Assembleias Legislativas Provinciais (estaduais), a quem cabia aprovar o orçamento das Câmaras Municipais e confirmar a validade das posturas (leis) aprovadas pelos vereadores.
Quatro anos depois, veio a Lei de Regimento dos Municípios, que ditava as regras de funcionamento das “Câmaras das cidades” e limitava seus poderes e funções. “As Câmaras são corporações meramente administrativas, e não exercerão jurisdição alguma contenciosa”, dizia um dos artigos, proibindo a prática comum de os vereadores atuarem como juízes.
Como se já não tivessem perdido muito de seu poder em poucos anos, os vereadores viram o presidente (governador) Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, um dos homens mais ricos e poderosos da Província de São Paulo, futuro marido da Marquesa de Santos, avançar ainda mais ao editar a lei que, em 1835, obrigou as Câmaras dos municípios paulistas a dividirem seus poderes com um prefeito. Na cidade de São Paulo, porém, os vereadores não estavam dispostos a aceitar com facilidade mais essa mudança.
Mamãe, não quero ser prefeito
“A inovação criadora de um prefeito municipal para a cidade de São Paulo e as vilas da Província não correspondeu ao êxito esperado de tal medida, sobretudo na capital paulistana” Affonso de Taunay no quinto volume de História da cidade de S.Paulo sob o império.
“A inovação criadora de um prefeito municipal para a cidade de São Paulo e as vilas da Província não correspondeu ao êxito esperado de tal medida, sobretudo na capital paulistana”, escreveu o historiador Affonso de Taunay no quinto volume de História da cidade de S.Paulo sob o império. “E quer nos parecer que o desentendimento havido desde os primeiros dias entre a Câmara e o chefe do seu executivo proveio da indeterminação de limites entre as referidas esferas de atribuições.”
As especificações do “emprego de prefeito”, descritas na lei promulgada por Tobias de Aguiar, davam ao cargo uma cara muito diferente da que conhecemos atualmente. Longe da figura altiva de chefe do Poder Executivo municipal eleito pela população, o prefeito imaginado em 1835 tinha como principal função “executar e fazer executar todas as ordens” do governo estadual, a quem cabia nomeá-lo e demiti-lo quando bem entendesse.
“Pior era a dupla obediência a que estava sujeito, às ordens e determinações do Conselho Geral de Governo e às deliberações e posturas da Câmara Municipal. (...) Não tinha poderes para uma administração independente” Wilson Maia Fina em Paço Municipal de São Paulo.
Não era um cargo cobiçado, a ser disputado com socos e cadeiradas como hoje. Pelo contrário, estava mais para uma chateação, tanto que quem fosse nomeado era obrigado a aceitar a função mesmo que não quisesse. Só poderia dizer não após ter atuado na função por pelo menos quatro anos. “Pior era a dupla obediência a que estava sujeito, às ordens e determinações do Conselho Geral de Governo e às deliberações e posturas da Câmara Municipal. (…) Não tinha poderes para uma administração independente”, resume o arquiteto Wilson Maia Fina em Paço Municipal de São Paulo.
A recém-criada figura de prefeito devia parecer aos olhos dos vereadores como um pau-mandado do presidente da província, já que sua principal função era atuar como “transmissor das instruções” do governo provincial à Câmara Municipal, além de informar a seu chefe “o estado de tranquilidade e segurança do município”, fiscalizar a conduta dos servidores públicos e comandar a Guarda Municipal. Para auxiliá-lo nos bairros da capital, o prefeito poderia nomear representantes locais, chamados de subprefeitos.
Por ser representante do governador, o prefeito deveria ser tratado com o máximo de respeito pelos vereadores. A lei previa que, em cada sessão, ele seria recebido de pé pelos parlamentares e se sentaria ao lado direito do presidente da Mesa Diretora da Câmara Municipal. Receberia as portarias, contas e orçamentos dos vereadores, opinando sobre tudo. Terminada a sessão, seria levado solenemente até a porta da rua pelo secretário da municipalidade.
Uma cilada
Se em outros municípios paulistas a chegada do prefeito se deu sem maiores problemas, o mesmo não ocorreu com a insubmissa cidade de São Paulo.
O primeiro prefeito da história paulistana, Luiz Antônio de Souza Barros, acabou que foi sem nunca ter sido. Tobias de Aguiar o nomeou em 5 de maio de 1835, mas os vereadores se recusaram a lhe dar posse, alegando que nada do que estava escrito na lei os obrigava a fazer isso. Acabou que Barros só conseguiu tomar posse mais de três meses depois, em 29 de agosto de 1835, quando, enfim, recebeu o cargo das mãos do novo presidente de São Paulo, Francisco Antônio de Souza Queiroz, o Barão de Souza Queiroz, que curiosamente era seu irmão mais velho (ambos eram filhos do Brigadeiro Luiz Antônio de Souza Queiroz, que hoje dá nome a uma das avenidas mais conhecidas da capital).
A história não registra o que os dois irmãos conversaram durante a posse, mas não é absurdo imaginar que o Barão tenha se inclinado ao final da cerimônia e sussurrado ao pé do ouvido do irmão caçula: “É uma cilada, cai fora”. Dias depois, o primeiro prefeito da história de São Paulo decidiu tirar licença do cargo para nunca mais voltar. “Demitira-se logo que tivera conhecimento de suas obrigações”, descreve Maia Fina.
Na sessão mensal seguinte da Câmara Municipal, em 28 de setembro, os vereadores escreveram ao presidente de São Paulo informando que a saída do seu irmão do cargo havia provocado “muitos transtornos e talvez prejuízos”, por ter “paralisado os objetos de Administração Municipal pela falta daquela autoridade”. A representação dos vereadores pedia ao Barão que indicasse um novo prefeito, mas houve quem preferisse cortar logo o mal pela raiz.
Na mesma sessão, o vereador João Olyntho de Carvalho foi logo propondo “a revogação da lei dos prefeitos”, promulgada apenas cinco meses antes. Era um sinal do quanto os parlamentares paulistanos haviam odiado o novo cargo e que fariam o que pudessem para se livrar dele.
“Em todas as vilas da Província funcionam os Prefeitos criados pela lei de 11-4-1835, não acontecendo o mesmo na Capital, onde ninguém tinha querido aceitar a nomeação para o cargo, depois que vagou por haver dado a sua demissão o primeiro nomeado”. ex-presidente Tobias de Aguiar diante da Assembleia Provincial, em 7 de janeiro de 1836.
“Em todas as vilas [equivalente a municípios] da Província funcionam os Prefeitos criados pela lei de 11-4-1835, não acontecendo o mesmo na Capital, onde ninguém tinha querido aceitar a nomeação para o cargo, depois que vagou por haver dado a sua demissão o primeiro nomeado”, reconheceu o ex-presidente Tobias de Aguiar diante da Assembleia Provincial, em 7 de janeiro de 1836.
Parece que o Barão teve dificuldade de achar alguém disposto a assumir essa bucha, tanto que deixou a Presidência sem indicar um novo prefeito a São Paulo. Seu sucessor, José Cesário de Miranda Ribeiro, o Visconde de Uberaba, que assumiu o governo da província em 25 de novembro de 1835, tentou resolver a questão escolhendo prefeitos interinos, selecionados entre os juízes de paz do município.
Segundo Maia Fina, nas semanas seguintes a Prefeitura de São Paulo recebeu três ocupantes relâmpagos: Joaquim Lopes Guimarães, que ficou 23 dias no cargo; Miguel Antunes Garcia, que permaneceu 16 dias; e por fim Joaquim José de Moraes Abreu, que durou ainda menos: apenas 10 dias. Para encontrar alguém que aceitasse ficar na cadeira, o Visconde resolveu apelar a Deus.
Um padre no inferno
O Visconde de Uberaba indicou para o cargo de prefeito o padre Pedro Gomes Camargo, em 22 de fevereiro de 1836. A decisão irritou de cara os vereadores, porque a escolha ignorou uma lista tríplice de nomes para o cargo, enviada pela Câmara Municipal a pedido do próprio presidente, que incluía nomes considerados mais prestigiosos, incluindo dois ex-presidentes da província. Já o padre era, sem trocadilho, um nome do baixo clero: “clérigo obscuro que nem sequer pertencia ao Cabido Episcopal [grupo de sacerdotes auxiliares do bispo]”, descreve Taunay.
A Câmara Municipal revidou recusando-se a dar posse ao novo prefeito, apelando para um suposto argumento jurídico, de que a posse deveria ser feita pelo presidente da província. O Visconde rebateu com novos argumentos jurídicos e obrigou os vereadores a darem posse ao padre. A Câmara obedeceu, mas “sob protesto”. O que começou assim não tinha como terminar bem.
CRONOLOGIA
Lei de dom Pedro I limita atuação das Câmaras Municipais.
Lei estadual cria o “emprego de prefeito” nos municípios de São Paulo.
Presidente (governador) nomeia o primeiro prefeito da capital: Luiz Antônio de Souza Barros.
Barros toma posse; dias depois, tira licença para nunca mais voltar.
Em 49 dias, três prefeitos são nomeados e deixam o cargo.
Presidente nomeia como prefeito o padre Pedro Gomes de Camargo.
Após pressão dos vereadores, governo revoga lei que criou os prefeitos.
Câmara elege o primeiro prefeito do período republicano, Antonio Prado.
A batina usada pelo novo prefeito não impediu que o clima entre ele e a Câmara Municipal fosse um inferno nos dois longos anos que se seguiram. Quando tentava nomear um subprefeito, Camargo era impedido pelo presidente da Câmara, e diversos gastos que autorizava acabavam impugnados pelo procurador da Casa. Irado, o prefeito passou a se negar a assinar diversos documentos necessários para o andamento do dia a dia da gestão municipal.
A relação com o prefeito se desgastou ao ponto de os vereadores nem disfarçarem mais
A relação com o prefeito se desgastou ao ponto de os vereadores nem disfarçarem mais, passando a reclamar do trabalho do padre como se fosse um empregado — e um empregado incompetente. Os parlamentares atacavam os fiscais indicados pelo prefeito por desperdiçar dinheiro público ao permitir gastos em obras mal feitas, usando um tom que, na descrição gentil de Taunay, “não era frequentemente dos mais atenciosos”, com “ares imperativos lembrando-lhe uma subalternidade que devia melindrar o sacerdote, tratado como mero dependente da Câmara e não como delegado do governo provincial”.
Em 17 de julho de 1837, os vereadores aprovaram, por unanimidade, um documento de protesto enviado ao presidente da província, em que denunciavam o padre como “infrator de leis municipais e desidioso [preguiçoso] ignorante no que ia sucedendo na administração a seu cargo”, por permitir que os seus fiscais autorizassem gastos sem dialogar com a Câmara Municipal.
A vitória dos vereadores
Em 1838, com a entrada em cena de uma legislatura nova em folha, os vereadores se sentiram ainda mais à vontade para investir não só contra o padre Camargo, mas contra o cargo de prefeito em si. O ano mal havia começado quando a Câmara enviou ao presidente, em 13 de janeiro, uma representação pedindo a revogação da lei de 1835, que teria lançado São Paulo no caos. “As posturas [leis] municipais que têm prevenido tudo o que pode ser danoso à polícia, não passa de letra morta; as contravenções são imensas, as ruas em completo desasseio, os muros não rebocados, contínuas as carreiras a cavalo, cães não açaimados [soltos] e porcos vagando pelas ruas, no centro da cidade, vendo-se pólvora e fogos de artifício, sem fiscalização alguma”, dizia o texto.
O estilo podia soar exagerado, mas o recado foi ouvido. O presidente paulista, Bernardo José Pinto Gavião Peixoto, decidiu que não valia mais a pena continuar a briga iniciada pelos seus antecessores e se rendeu aos vereadores. Em 29 de janeiro, promulgou a lei número 4, que revogou a norma que havia criado os prefeitos. “Todas as atribuições pela referida lei conferidas aos prefeitos, revoltem novamente para as mesmas autoridades, a quem antes pertenciam”: assim a lei expunha a rendição completa do governo provincial. E não era uma vitória qualquer: pelas décadas seguintes, os vereadores nunca mais tiveram de dividir poder com qualquer prefeito.
O cargo só voltaria a dar as caras seis décadas depois, no final daquele século. Após a derrubada da Monarquia e a proclamação da República, em 1889, o Brasil finalmente abraçou o ideal iluminista da separação entre Poderes, implantando para valer a divisão entre Executivo e Legislativo nos municípios. Em 1899, o vereador Antônio Prado foi eleito o primeiro prefeito de São Paulo do período republicano. Dessa vez, para ficar.
Edição: Sândor Vasconcelos sandor@saopaulo.sp.leg.br
SAIBA MAIS
Livros
FINA, Wilson Maia. Paço Municipal de São Paulo. Anhambi, 1962
PRESTES FILHO, Ubirajara de Farias. Câmara Municipal de São Paulo : 450 Anos de História. Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012
TAUNAY, Affonso de E. História da cidade de S.Paulo sob o império, 1831-1842, volume 5. Coleção Departamento de Cultura, 1961
TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão: uma história de São Paulo das origens a 1900. Objetiva, 2003