História

Quando os vencidos narram a história

Para celebrar a democracia, vereadores mudam nomes de ruas ligados à ditadura, trocando algozes por suas vítimas e golpistas por golpeados
Tempo estimado de leitura: 6 minutos

Texto: Fausto Salvadori | fausto@saopaulo.sp.leg.br

O velho fascínio da elite paulistana pelos bandeirantes, que já havia dado origem a monumentos como o das Bandeiras, no Parque do Ibirapuera, ou o do Borba Gato, em Santo Amaro, voltou a se manifestar em 1969, quando militares de São Paulo resolveram usá-los para nomear uma das experiências mais sangrentas da ditadura militar.

Instituída em 1969, a Operação Bandeirante (Oban) fez jus ao nome e se tornou o principal centro de torturas e mortes do governo, um inferno localizado na Rua Tutoia, no bairro do Paraíso. Só que, em vez de perseguir povos indígenas, esses novos bandeirantes se dedicavam a caçar opositores do governo militar.

Sem registros oficiais, a Oban funcionava à margem da lei, com homens das Forças Armadas e das polícias, e contava com financiamento privado de empresários, como se fosse um grande grupo miliciano. Foi oficializada em 1970, com o nome de Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi).

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Frei Tito, torturado pelo delegado Fleury (dir.), suplantou a memória de seu algoz | Crédito: Divulgação

Uma das vítimas da Oban foi o frade dominicano Tito de Alencar Lima, preso em 1969 sob acusação de colaborar com o grupo guerrilheiro Ação Libertadora Nacional (ALN), liderado por Carlos Marighella. Frei Tito passou 40 dias no Departamento de Ordem Política e Social (Dops), sendo torturado pessoalmente pelo delegado Sérgio Paranhos Fleury. Um dos principais assassinos e torturadores do governo militar, Fleury liderou a operação que executou Marighella e integrava o Esquadrão da Morte, que exterminava pobres e negros suspeitos de “crimes comuns”. Em seguida, Tito foi levado à Oban, onde as torturas continuaram por mais um mês. “Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de sua valentia”, ouviu da boca de um de seus algozes.

Não deu outra. Banido do Brasil pelo presidente general Garrastazu Médici, Tito exilou-se na França, mas os fantasmas de seus torturadores continuaram a persegui-lo. Mesmo sob tratamento psiquiátrico, nunca conseguiu se livrar dos surtos em que ouvia a voz de Fleury ressoar dentro da sua cabeça e via sua família passar pelas mesmas torturas que ele havia sofrido. “É melhor morrer que perder a vida”, escreveu em uma de suas anotações. Em 1974, suicidou-se.

No mesmo ano da morte de Tito, o governo que levou o frade ao suicídio foi homenageado pela Câmara Municipal de São Paulo (CMSP). Uma resolução deu a um auditório, localizado no 6º andar da sede da Casa, o nome de 31 de Março, em alusão à data do golpe de estado, em 1964, que derrubou o governo do presidente democraticamente eleito João Goulart e deu início a 21 anos de ditadura. Segundo o presidente da CMSP na época, João Brasil Vita, a homenagem tinha como objetivo “perpetuar numa das dependências da Edilidade, o fato histórico, auspicioso e irreversível ocorrido no Brasil”.

O Auditório 31 de Março foi apenas uma entre várias homenagens feitas pelos vereadores à ditadura, que incluíam sessões solenes para celebrar a chegada dos militares ao poder e a distribuição de honrarias a diversos nomes ligados ao regime, como os presidentes Médici e Ernesto Geisel. Tudo isso apesar de a ditadura ter cassado arbitrariamente três vereadores de São Paulo, entre 1964 e 1973, e cortado para menos da metade o número de parlamentares.

É como se a Câmara vivesse uma relação abusiva com o governo militar, que durou até perto do final do regime. Em 1984, parece que os vereadores já tinham se ligado de quem era o boy lixo daquela relação e, antes mesmo de os militares deixarem o poder, editaram uma resolução alterando o nome do Auditório 31 de Março para Auditório Senador Teotônio Vilela, o Menestrel da Democracia, em homenagem ao político alagoano símbolo da luta pela redemocratização.

Foi o início de um longo ajuste de contas, entre avanços e recuos, com o passado obscuro da ditadura. Os vereadores paulistanos desempenharam um papel importante no esclarecimento dos crimes cometidos pelo regime militar, por meio de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investigou a vala clandestina do cemitério de Perus, em 1990, e da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog, entre 2012 e 2015. Em seu primeiro relatório parcial, publicado em 2012, essa Comissão olhou justamente para as homenagens à ditadura que ainda enchiam as ruas da cidade e recomendou para a CMSP “produzir legislação que permita mudar nomes de ruas que homenageiam personalidades da ditadura”.

CHEGAM AS MUDANÇAS

No ano seguinte, a Casa seguiu a recomendação e aprovou a lei 15.717, proposta pelos vereadores Jamil Murad e Orlando Silva, que autorizava a mudança dos nomes de vias “quando se tratar de denominação referente à autoridade que tenha cometido crime de lesa-humanidade ou graves violações de direitos humanos”. Em 2015, a lei serviria de base para o prefeito Fernando Haddad publicar o decreto 57.146, que criou o programa Ruas de Memória. O objetivo? A “mudança progressiva das denominações de logradouros e equipamentos públicos municipais denominados em homenagem a pessoas, datas ou fatos associados a graves violações aos direitos humanos”.

As primeiras mudanças de nome com base nas novas normas atingiram duas homenagens que haviam sido feitas pelo prefeito Paulo Maluf em 1970. Nomeado para o cargo pelo presidente Costa e Silva, sem precisar disputar eleições, Maluf editou um decreto que deu o nome do seu padrinho político, falecido em 1969, para um elevado no centro da cidade que ainda estava em obras. Batizado antes de ter nascido, o Elevado Costa e Silva só foi inaugurado em 1971 — e o povo, no geral, preferiu chamá-lo de Minhocão a usar o nome do ditador. Maluf ainda batizou um viaduto de 31 de Março, alegando que a data simbolizava “o mais belo movimento cívico para a redenção da família brasileira”.

Em 2016, o nome de Costa e Silva foi apagado do elevado para dar lugar ao do homem que o general havia ajudado a tirar do poder, e com ele a democracia brasileira: João Goulart. Na justificativa do projeto que deu origem à lei 16.525, o vereador Eliseu Gabriel (PSB) lembra que Costa e Silva, além de ter participado “ativamente da conspiração que derrubou” Goulart, “aos 13 de dezembro de 1968 editou o AI-5, que lhe dava poderes para fechar o Parlamento, cassar políticos e institucionalizar a repressão e a tortura”. E acrescenta: “O Elevado Costa e Silva somente recebeu este nome por ter sido construído e inaugurado durante a ditadura militar, o que em plena democracia se torna um contrassenso”.

Em 2017, os vereadores aprovaram uma lei em sentido contrário. A 16.629 acrescentou ao nome da Ponte das Bandeiras, na Luz, o do delegado Romeu Tuma, mencionado como violador de direitos humanos no relatório da Comissão Nacional da Verdade, por ter dirigido o Dops, em São Paulo, de 1977 a 1983, “período em que o órgão teve grande envolvimento com atividades de repressão política”. Na época, o vereador Eduardo Tuma, sobrinho de Romeu e autor da proposta, dizia que “nunca houve qualquer acusação específica de violação de direitos humanos” contra seu tio e que o fato de ter dirigido o Dops “sem acusação de fato individualizado, não pode lhe atribuir a pecha de violador dos direitos humanos”.

Em 2018, retomando a busca por eliminar as homenagens à ditadura, foi a vez de o viaduto 31 de Março mudar para Therezinha Zerbini, ativista da luta contra a ditadura, com base na lei 16.846, a partir de projeto de Adriana Ramalho.

“Não me parece razoável, em uma sociedade democrática, que torturadores e facínoras que violaram direitos humanos e mataram pessoas por motivos políticos sejam homenageados pelo poder público”, explica Orlando Silva, hoje deputado federal. Além de ter sido coautor da primeira lei que revisava as homenagens ao regime militar, ele também ajudou a exorcizar o fantasma do delegado Sérgio Paranhos Fleury, que por quase 40 anos assombrou o nome de uma rua de 120 metros da Vila Leopoldina. A homenagem ao torturador havia sido inserida discretamente, em meio a outras 12 denominações de vias, num decreto de 1982 do prefeito Salim Curiati.

Para Silva, a simples existência de uma rua com nome de Fleury era inconcebível. “Nossa Constituição considera a tortura um crime tão grave que é imprescritível e inafiançável. Logo, não se pode homenagear um torturador”, afirma. Proposto pelo então vereador em 2013, o projeto foi votado e transformado na lei 17.648 em setembro de 2021. Para bem expulsar o fantasma do torturador, a Rua Doutor Sérgio Fleury passou a se chamar Frei Tito de Alencar Lima.

“É uma pequena rua de 100 metros na Lapa, mas tem um imenso simbolismo, porque troca o nome do torturador pelo do torturado”, afirma o vereador Antonio Donato (PT), coautor do projeto juntamente com Silva, Alfredinho (PT), Arselino Tatto (PT), Jamil Murad, Juliana Cardoso (PT), Professor Toninho Vespoli (Psol) e Reis (PT).

“É uma pequena rua de 100 metros na Lapa, mas tem um imenso simbolismo, porque troca o nome do torturador pelo torturado." Antonio Donato, vereador

Se mudanças como essas já eram importantes quando começaram a ser feitas, há cinco anos, tornaram-se mais relevantes do que nunca nos dias de hoje, quando “virou pauta de alguns tentar reescrever a história defendendo a ditadura”, afirma Donato. “Essa pauta se torna ainda mais importante para sinalizar à sociedade quais valores ela incentiva: a luta pela democracia, a solidariedade e não a violência, a tortura, a ditadura. Tem um papel educativo profundo.”

O vereador afirma que “a história está em permanente disputa”, lembrando um ditado africano, disseminado no mundo pelo escritor nigeriano Chinua Achebe, que diz: “Até que os leões tenham seus próprios historiadores, a história da caça sempre glorificará o caçador”.

Donato defende que se amplie o debate, e que se busque a história dos leões também nas narrativas consolidadas, como as dos heróis transformados em pedra nos pedestais das praças. “Atear fogo na estátua do Borba Gato chamou atenção para o debate, mas não me parece a melhor maneira. No mundo todo ainda não se encontrou o caminho.”

Edição: Sândor Vasconcelos | sandor@saopaulo.sp.leg.br

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Relatórios

Relatório da Comissão Municipal da Verdade Vladimir Herzog
Relatório da Comissão Nacional da Verdade

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