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Uma legislatura para recomeçar

Após Estado Novo, Primeira Legislatura reforça papel dos vereadores como porta-vozes dos paulistanos
Tempo estimado de leitura: 12 minutos

Rodrigo Garcia | rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

Publicada originalmente em jun/2013 – edição nº 1

Foram tempos tumultuados. Na segunda metade dos anos 40 do século passado, o mundo saiu de um grande conflito internacional e entrou na Guerra Fria. O Brasil depôs Getúlio Vargas, optou por um lado na disputa (pró-Estados Unidos), realizou eleições, promulgou uma nova Constituição e cassou comunistas.

A cidade de São Paulo e sua Câmara Municipal não ficaram alheias à movimentação. A legislatura 1948-1951, primeira do período histórico contemporâneo, é considerada por historiadores como de suma importância, pois reflete as mudanças políticas e urbanas ocorridas desde a Revolução de 30.

Após 11 anos fechado, em 1948 o Parlamento municipal reiniciou suas atividades com a anulação, pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), da candidatura de 15 vereadores eleitos pelo Partido Social Trabalhista (PST), acusados de ser comunistas (incluindo aquela que seria a primeira mulher a se tornar vereadora paulistana, Elisa Kauffmann Abramovich). Os trabalhos consistiram em análises das contas de cinco prefeitos, debates acalorados sobre questões da metrópole e até agressão física a um vereador que anos depois seria o presidente da República, Jânio Quadros.

“Como as eleições para vereador ficaram mais livres, os eleitores tornaram-se mais importantes, o voto passou a ter mais valor e os vereadores descobriram a importância da periferia”, explica Ubirajara de Farias Prestes Filho, consultor em História da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP). Ele completa que, como os prefeitos ainda eram escolhidos pelo governador, a Casa “virou um grande canal para as reivindicações por infraestrutura, saúde, educação, assistência e lazer; as sociedades amigos de bairro levavam para a Câmara suas reivindicações, e o Parlamento as encaminhava para a Prefeitura”.

“Como as eleições para vereador ficaram mais livres, os eleitores tornaram-se mais importantes, o voto passou a ter mais valor e os vereadores descobriram a importância da periferia.” Ubirajara de Farias Prestes Filho

A campanha eleitoral da época era baseada no corpo a corpo, bem amadora. Altimar Ribeiro de Lima, vereador da Primeira Legislatura, falecido em 2009, contou como conseguia os votos. “Eu tinha uma lista de nomes dos eleitores e de suas crianças. Distribuía pessoalmente arroz, feijão, farinha, velocípede, patinete, boneca. Quem recebia a cesta básica, recebia brinquedo para os filhos; tornava-se eleitor cativo porque sabia que eu não o abandonava”, afirmou em entrevista ao jornalista Sândor Vasconcelos, da CMSP, em 2008. Ele também se lembra de que alguns candidatos usavam outras formas de campanha. “Passava um e punha uma faixa na rua; aí outro tirava a faixa e punha a dele. Distribuía santinho, falava no rádio, pintava muro, podia fazer tudo.”

Já o ex-vereador Décio Grisi declarou em depoimento publicado no livro São Paulo na Tribuna – Primeira Legislatura (1948-1951): “A minha campanha foi muito parecida com a de Jânio Quadros, professor como eu. Ele, no Dante Alighieri, e eu, no Ginásio do Estado. Ambos contamos com o trabalho dos nossos alunos na campanha. Eles espalhavam mesinhas na cidade com nossas cédulas e foram os principais responsáveis pela nossa eleição. No meu caso, o eleitor que desconhecia o seu local de votação era orientado pelos alunos, que estavam munidos de informações das listas de endereços publicadas no Diário Oficial”.

Vereador da Primeira Legislatura

O vereador da Primeira Legislatura Décio Grisi discursa na Tribuna da Câmara em 2012
Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Vereador da Primeira Legislatura

O vereador da Primeira Legislatura Décio Grisi discursa na Tribuna da Câmara em 2012
Foto: Ricardo Rocha/CMSP

Outro vereador da Primeira Legislatura, Francisco Assumpção Ladeira, morto em 2011, explicou os motivos de ter optado pela vereança. “O que me interessa é a política municipal, não me interessa mais nada – Marselha, Paris, Lisboa – porque eu não vou viver lá. Quero saber da terra onde vivo e vou morrer. Transporte, água, esgoto, iluminação, todas as coisas que uma cidade deve ter. Podendo contribuir para isso, resolvi me candidatar a vereador”, contou em 2009 ao historiador Bernardo Schmidt, para o documentário Tardes com Seu Chico.

Antes mesmo de começar, a Primeira Legislatura sofreu um golpe. Em 31 de dezembro de 1947, véspera da posse, o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo acatou decisão do TSE, que declarou inexistentes os registros de candidatura dos 15 vereadores (um terço do total da Câmara) eleitos pelo PST e já diplomados. A alegação foi que eles eram comunistas, os “candidatos de Prestes”, em referência ao líder comunista Luís Carlos Prestes.

No dia seguinte, na posse, os vereadores cassados e cerca de cem militantes protestaram no Palacete Prates, sede da CMSP na época. Alguns manifestantes foram detidos pela polícia.

Entre os vereadores cassados, estava Elisa Kauffmann Abramovich, que seria a primeira mulher a ocupar uma vaga na Câmara Municipal de São Paulo. Assim, a primeira vereadora da cidade foi Anna Lamberga Zéglio, eleita pelo Partido Social Progressista (PSP) em 1951, para a legislatura seguinte. Atualmente a Câmara aprovou uma resolução que reconhece esses vereadores cassados como legítimos representantes do povo.

Material da campanha de reeleição de Francisco Assumpção Ladeira, em 1951 | Foto: Arquivo CMSP

Megalópole em construção

Os debates e os projetos da Primeira Legislatura tratavam de problemas referentes a uma cidade que, ainda com muitas características rurais, rapidamente passava a ser uma megalópole: criação de animais, plantações nas margens do Rio Tietê, a migração de nordestinos, trânsito, transporte público, calçamento de ruas, construção de pontes, obras de saneamento, ações de assistência social, proteção à infância e até porteiras que existiam no Brás para permitir a passagem de trens.

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Em 1948, Jânio Quadros fiscaliza prova de datilografia durante concurso para a Câmara Municipal de São Paulo

Foto: Arquivo CMSP

A historiadora Carla Reis Longhi pesquisou os anais da Primeira Legislatura e relata no livro São Paulo na Tribuna – Primeira Legislatura (1948-1951) que os debates realizados na Câmara naquele período mostram uma preocupação genuína da vereança em discutir as questões que afligiam a cidade. “Os vereadores não se esquivavam de seu papel político e traziam para o debate no Plenário os diferentes temas da cidade, confrontando o Poder Executivo quando identificavam sua obstrução ou ineficiência”, revela Carla. “Por outro lado, explicitavam o projeto de sociedade cujo norte inicial era a preocupação com o desenvolvimento nacional”, completa. Uma nação desenvolvida para a época, segundo a historiadora, teria de ser moderna, civilizada, urbana e industrializada.

Ainda segundo Carla, a cidade precisava resolver alguns aspectos para trilhar a modernidade. O primeiro era distanciar-se de suas marcas rurais. “Para tanto, tratou de associá-las aos sujeitos identificados com o atraso, os migrantes nordestinos, ao mesmo tempo em que tornou São Paulo um grande canteiro de obras”. Em segundo lugar, precisava dos agentes da industrialização, sem o ônus dessa necessidade. Para isso, “apoiou o fluxo migratório, com mão de obra barata, mas ofereceu um modelo urbano de periferização”.

A relação da Câmara com o Poder Executivo municipal, muitas vezes, foi de confronto, pois os prefeitos das capitais eram escolhidos pelo governador. Em 1948, os vereadores rejeitaram as contas do prefeito Paulo Lauro, que foi demitido no dia seguinte pelo governador Ademar de Barros. Nos quatro anos da Primeira Legislatura, São Paulo teve cinco prefeitos: Paulo Lauro, Milton Improta, Asdrúbal Euritysses da Cunha, Lineu Prestes e Armando de Arruda Pereira.

Historiador Prestes Filho

“Como as eleições para vereador ficaram mais livres, os eleitores tornaram-se mais importantes”, explica o historiador Prestes Filho
Foto: Marcelo Ximenez/CMSP

Historiador Prestes Filho

“Como as eleições para vereador ficaram mais livres, os eleitores tornaram-se mais importantes”, explica o historiador Prestes Filho
Foto: Marcelo Ximenez/CMSP

O historiador Ubirajara Prestes Filho explica que “para muitos vereadores, o prefeito não era um representante popular, mas um tipo de extensão do governador Ademar de Barros, assim a crítica era dirigida tanto ao prefeito, como a quem o nomeou”. Ele completa: “Alguns vereadores fortaleceram sua carreira em torno dessa crítica, como é o caso de Jânio Quadros, que se opôs com veemência ao governador”.

Segundo o especialista em história, a população, por sua vez, passava a reconhecer gradualmente o direito a infraestrutura, educação e saúde. “Após o Estado Novo, a cidade sofreu uma redefinição na esfera política. A população, incluindo a periferia e seus representantes, passou a ter um papel mais amplo no cenário estadual e nacional”, explica Ubirajara. “Os prefeitos não poderiam mais realizar seus planos de governo sem a negociação política, mesmo que fossem nomeados pelo governador. A democratização pusera essa nova condição, e os anos da Primeira Legislatura foram essenciais no ajuste dessa ideia”, completa.

Prestes Filho acrescenta que o apelo popular não poderia mais ser negligenciado, também, porque a imprensa poderia atacar ou criticar a ação dos governantes: “A preocupação dos políticos com a imagem perante o público era mais uma dimensão desse novo cenário”.

Abacaxi estragado

Os vereadores, conscientes do papel de porta-vozes do povo e de que tinham se tornado foco da atenção da imprensa, do rádio e da TV, levavam para o Plenário inúmeras queixas da população. Com o objetivo de justificar suas denúncias, chegaram a exibir na Tribuna objetos como fotografias, um paralelepípedo, um pano muito sujo por ter sido usado como filtro de água da torneira e até um abacaxi estragado.

Ex-vereador Ladeira: “O que me interessa é a política municipal, mais nada – Marselha, Paris, Lisboa – porque não vou viver lá”
Foto: Gute Garbelotto/CMSP

O caso da fruta podre foi protagonizado por Jânio Quadros, que exibiu o abacaxi como uma prova da necessidade de aumentar a fiscalização dos produtos vendidos em feiras e quitandas. Esse episódio mostra que o futuro presidente da República, em seu primeiro cargo público, já possuía um aguçado senso de marketing político, pois, como relatou Francisco Assumpção Ladeira, o abacaxi não foi vendido. Jânio e ele iam para a Câmara quando, na Rua Líbero Badaró, a poucos metros do Palacete Prates, viram um quitandeiro jogando a fruta estragada no lixo. Jânio, então, pediu o abacaxi e o levou à Tribuna. “O Jânio era um demagogo”, criticou Ladeira em 2008.

Quadros foi o grande personagem da legislatura 1948-1951, mesmo sendo a primeira vez que ocupava um cargo público. “Ele tinha uma atitude muito teatral e o Plenário foi um grande palco”, explicou o historiador Prestes Filho. Jânio foi também deputado estadual, prefeito, governador, deputado federal e presidente do Brasil.

Um dos momentos mais marcantes de seu mandato como vereador ocorreu quando ele foi agredido fisicamente em 3 de outubro de 1949. A Câmara estava realizando debates acalorados sobre um projeto de lei que concedia benefícios a associações esportivas. Jânio era contra e o combatia com veemência. Em um discurso, o vereador, na época com 32 anos, chamou de fascista seu colega João Carlos Fairbanks, de 58 anos, provavelmente por causa de seu passado como militante integralista. O também vereador Altimar Ribeiro de Lima, com 25 anos, tomou as dores e partiu em defesa de Fairbanks.

O próprio agressor, em entrevista concedida em 2008, contou o que ocorreu: “Jânio agrediu o Fairbanks, verbalmente, afirmando ‘Vossa Excelência não merece a cadeira que ocupa, Vossa Excelência devia estar fora daqui’. Aí, eu me levantei e disse ‘Ó, Jânio, você não mede as palavras, né? Pegar o Fairbanks com essa agressão, um senhor de tanta idade’. Jânio respondeu: ‘Você, seu fedelho, você e nem seu pai prestam’. Quando ele disse que meu pai não prestava… Eu era faixa-preta de judô, aí pus o pé na mesa da secretária, peguei o Jânio pelo pescoço e dei-lhe um soco. Ele bateu com a cabeça no ferro que tinha ao lado da mesa, começou a sangrar, passou a mão na cabeça e disse ‘esse projeto precisava do meu sangue para não passar!’”.

Jânio, que continuou discursando na Tribuna enquanto recebia os primeiros socorros do médico e vereador Smith de Vasconcelos, estava certo. O projeto não foi aprovado.

“A Câmara dos anos 1948 a 1951 foi um verdadeiro Parlamento; tanto assim que as galerias viviam lotadas, as pessoas tinham interesse em assistir às sessões”, contou no livro São Paulo na Tribuna Edson Ravena, servidor aposentado da Câmara que, na época da Primeira Legislatura, já trabalhava no Palacete Prates e testemunhou o ataque a Jânio.

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A Primeira Legislatura (1948-1951) funcionou no Palacete Prates, na Rua Líbero Badaró | Foto: Arquivo CMSP

O vereador que arrancou sangue de Jânio

Em 18 de julho de 2008, Altimar Ribeiro de Lima, já com 84 anos, concedeu entrevista ao jornalista Sândor Vasconcelos, da CMSP, e à TV Câmara. Na ocasião, ele se lembrou de sua carreira política, iniciada aos 23 anos, da Primeira Legislatura (a primeira das três como vereador) e dos antigos companheiros. Altimar, engenheiro civil, foi secretário municipal de Obras e deputado estadual também por três legislaturas. Alguns trechos da entrevista:

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Segundo o ex-vereador Ribeiro de Lima, a relação entre os parlamentares era boa: “Acabavam as brigas e todo mundo se abraçava”

Foto: Fábio Jr Lazzari/CMSP

Quando o senhor foi vereador, qual tema mereceu mais a sua atenção?
Altimar Ribeiro de Lima: Eu comecei a me interessar, de pronto, por um problema que até hoje aflige a nossa cidade. Como vereador, eu saía de casa às 6 horas da manhã e plantava 10 árvores por dia. Não eu pessoalmente, mas acompanhando o plantio. Assim, as árvores que plantei na Vila Madalena, no Butantã, na Vila Sônia, em diversos bairros, estão lá até hoje. Eu cheguei, pelas minhas contas, durante o meu mandato de vereador, a plantar mais de 30 mil árvores. Hoje, o pessoal reclama do ar de São Paulo. Se cada um tivesse plantado uma árvore, se cada dono de carro tivesse plantado uma árvore, nós não teríamos problema de respiração, de asma, de bronquite. Mas, infelizmente, ninguém seguiu o meu exemplo. Pelo contrário, é cortar árvore e não replantar. E as que replantam, às vezes não pegam e nem são substituídas. Esse é um problema que atinge a nossa vida e incomoda, traz prejuízo à saúde.

Como era a relação entre os vereadores?
Era boa, com muito diálogo, tudo amigável. Acabavam as brigas e todo mundo se abraçava.

Mas havia discussões, confronto de ideias?
Havia preconceito, como ‘não voto nesse, não voto naquele’. Isso tinha. Mas acabava a sessão, ficava tudo igual.

O senhor se lembra dos principais líderes políticos da Câmara na época?
Eu era um deles. Jânio era outro.

Como era a relação com ele?
Era de amizade. Um dia antes de Jânio dizer que papai não prestava, eu tinha estado em sua casa para jogar baralho. Na véspera de ter uma briga, nós ficamos jogando, na maior das amizades. No dia seguinte, eu arranquei sangue dele.

E depois voltou a amizade ou ficaram sem conversar?
A gente voltou a conversar.

Mais algum momento marcante na Câmara Municipal de São Paulo?
Tem um interessante. O Jânio tinha um capote sujo, cebolento. Ele entrava na Câmara e pendurava. Estava fazendo um frio desgraçado e ele deixou a capa lá. Aí, então, ele saiu e eu peguei o capote, corri e dei para um pobre que estava passando na rua. O pobre fez uma cara assim, meio esquisita, de receber aquele troço sujo, mas estava muito frio e ele pôs. Aí o Jânio veio correndo, da Câmara, e arrancou o capote do pobre.


Conhecendo melhor a Primeira Legislatura 

Para quem deseja aprofundar as informações sobre a Primeira Legislatura, dois livros e um blogue são fundamentais. Um livro é São Paulo na Tribuna – Primeira Legislatura (1948-1951), organizado pelo jornalista Luiz Casadei Manechini e editado pela Câmara Municipal de São Paulo. Na obra há entrevistas com funcionários aposentados que trabalharam na CMSP na ocasião e com políticos atuantes, além da participação do ex-vereador Décio Grisi, que aos 94 anos deu um depoimento. Os destaques são as análises dos anais da CMSP e artigos escritos por especialistas sobre a história da cidade.

Outro livro é Câmara Municipal de São Paulo – 450 Anos de História, com pesquisa e texto do historiador Ubirajara de Farias Prestes Filho. Em sua segunda edição, revisada e atualizada, mostra a história do Parlamento municipal desde sua fundação, em 1560, até os dias atuais. A obra é fundamental para entender o que ocorreu antes e depois da Primeira Legislatura.

O historiador Bernardo Schmidt, autor do livro Jânio – Vida e Morte do Homem da Renúncia – Volume 1 – Um Moço Bem Velhinho, criou o blogue O Patativa, em que revela muitas histórias sobre personagens importantes da política municipal na segunda metade do século 20. Um dos destaques é um documentário com o vereador da Primeira Legislatura Francisco Assumpção Ladeira, Tardes com Seu Chico.

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