História

Vivas ao Grito

Há 200 anos, a CMSP apoia e celebra a independência do Brasil
Tempo estimado de leitura: 10 minutos

Rodrigo Garcia rodrigogarcia@saopaulo.sp.leg.br

As margens plácidas do Ipiranga ouviram o brado retumbante de um povo heroico. E o sol da Liberdade brilhou no céu do Brasil naquele momento. É assim que o hino nacional brasileiro conta como foi a proclamação da Independência em 7 de setembro de 1822. A conquista da liberdade, contudo, foi fruto de um longo processo, no qual a Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) teve um papel importante.

Segundo historiadores, a independência do Brasil teria começado em 1808, quando a família real veio para o Rio de Janeiro por causa da invasão das tropas francesas de Napoleão Bonaparte em Portugal. A vida dos moradores da colônia se transformou muito. Em 1815, mudou o status jurídico brasileiro. De colônia, passou a ser reino unido de Portugal, Brasil e Algarves.

Mas no caminho da independência também houve reveses. Em 1821, as Cortes (como era conhecido o Parlamento português) determinam o regresso do rei d. João VI para Portugal. Ele volta, mas deixa seu filho, Pedro de Alcântara, como príncipe regente.

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Quadro de Pedro Américo é a mais famosa representação da Proclamação da Independência | Crédito: Wikipédia

A situação fica mais tensa em setembro, quando as Cortes exigem o retorno de d. Pedro a Portugal. Havia rumores de que os portugueses queriam que o Brasil voltasse ao status de colônia.

Na última sessão de 1821, em 31 de dezembro, os vereadores paulistanos fizeram uma súplica a d. Pedro: não embarcasse até que os portugueses mudassem de ideia. Eles mandaram uma mensagem ao príncipe afirmando que as Cortes pretendiam “iludir e escravizar um povo livre, cujo crime era haver dado demasiado crédito a vãs promessas”.  Os parlamentares também garantiam que os paulistas estavam dispostos “a esgotarem a última pinga de sangue” na luta por seus direitos. Na época, as Câmaras tinham uma importância enorme no Brasil, pois exerciam funções políticas, judiciárias e administrativas. Não havia prefeitos.

Com os apelos, em 9 de janeiro de 1822, d. Pedro teria usado uma de suas primeiras frases de efeito para anunciar: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, estou pronto. Diga ao povo que fico”. O Dia do Fico foi mais um passo no caminho da independência.

Sete meses depois, a Província de São Paulo enfrentava uma disputa política entre o grupo do governador João Carlos Augusto de Oyenhausen Gravenburg e o de José Bonifácio de Andrada e Silva, ministro de Negócios de Estado do Reino e futuro Patriarca da Independência. O príncipe prestigiou pessoalmente o grupo de seu aliado.

Em 24 de agosto, d. Pedro dormiu na Penha, atualmente um bairro na zona leste da cidade, e mandou uma solicitação à Câmara: gostaria de ser recebido na entrada do Centro de São Paulo pelos vereadores que lhe fossem leais.

No dia seguinte, os parlamentares foram recepcionar Sua Alteza em frente ao palácio episcopal, na Ladeira do Carmo. De lá seguiram para a Igreja da Sé, onde foi celebrado o te deum laudamos (em português, Nós Te Adoramos, ritual solene em homenagem a uma autoridade). Depois foram para o Palácio do governador, no Pátio do Colégio, onde os vereadores foram os primeiros a participar do beija-mão (cerimônia para mostrar lealdade ao monarca).

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O relevo em bronze Grito do Ipiranga, de Adalberto Vieira, está no Palácio Anchieta | Crédito: Acervo CMSP

O porta-voz da Câmara foi o vereador Manuel Joaquim de Ornellas, porque, como consta dos anais da instituição, tinha “suficiência para falar”. Segundo o pesquisador Roberto Pompeu de Toledo, no livro A capital da solidão, entre muitos elogios, Ornellas comparou o príncipe ao sol, “o astro luminoso que, raiando no nosso horizonte, veio dissipar para sempre, com seus brilhantes raios, as negras e espessas sombras que o cobriam”.

Pedro foi também a Santos, cidade natal de José Bonifácio. Na volta para São Paulo, em 7 de setembro, nas margens do Riacho Ipiranga (chamado de Piranga em algumas atas da Câmara), o príncipe regente recebeu cartas de sua esposa, Maria Leopoldina, e de José Bonifácio. Ambos lhe contaram que a situação estava se agravando e o aconselharam a tomar uma atitude rapidamente. O príncipe proclama, então, a independência do Brasil bradando: “Independência ou morte!”.

Naquela noite, no Teatro de Ópera de São Paulo, o príncipe regente foi bastante aplaudido e da plateia veio um novo grito. Dessa vez do padre Ildefonso Xavier Ferreira: “Viva o primeiro rei dos brasileiros!”.  Mais aplausos. Porém, a luta pela independência ainda iria se intensificar.

No dia seguinte, o príncipe divulgou uma proclamação a “meus amigos paulistanos, a quem o Brasil e Eu devemos os bens que gozamos” . E fez um apelo: “Agora, paulistanos, só vos resta conservardes a união entre vós, não só por ser esse o dever de todos os bons Brasileiros, mas também porque a Nossa Pátria está ameaçada de sofrer uma guerra”.

O fato de o príncipe não ter citado no texto o Grito do Ipiranga mostra a pouca repercussão que o episódio teve na época.

Vinte e um dias depois do Grito, a Câmara de São Paulo dá mais uma demonstração de apoio a d. Pedro. Na sessão de 28 de setembro de 1822, é lida uma carta enviada pela Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro, perguntando aos parlamentares paulistanos o que achavam da “necessidade de investir Sua Alteza Real, Seu Augusto Regente e Defensor Perpétuo de todas as atribuições do Poder Executivo, sem restrição alguma, como chefe constitucional do mesmo poder em todo este reino”. Também estavam nessa sessão, como convidados, “o clero, a nobreza e o povo da cidade”. Os vereadores queriam saber o que eles achavam da questão.

A reposta dos parlamentares e dos convidados foi que d. Pedro “entrasse já no exercício ilimitado de todas as atribuições do Poder Executivo, visto ser este o único meio seguro e adequado para salvar este Reino das indiscretas tentativas dos seus inimigos, e conservar ilesa a sua dignidade e independência, proclamada pelo mesmo Augusto Senhor”. A carta da cidade de São Paulo foi assinada por mais de 150 homens.

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Quadro de Debret mostra a aclamação de d. Pedro, no Rio de Janeiro, como imperador: data foi mais comemorada em São Paulo do que o Grito do Ipiranga | Crédito: Enciclopédia Itaú Cultural

Na sessão extraordinária de 30 de setembro, foi lido que os vereadores do Rio de Janeiro tinham decidido proclamar d. Pedro como “primeiro imperador constitucional do novo império brasiliense, visto que esta é a vontade geral do povo e da tropa daquela corte e Província para assim evitarem os grandes males da anarquia e da guerra civil, que se seguiriam uma vez que se arrancasse de seu seio o idolatrado príncipe, o centro de união de todas as províncias coligadas deste reino”. A aclamação seria em 12 de outubro, dia em que o príncipe completaria 24 anos de idade.

Segundo a Câmara de São Paulo, a notícia foi recebida com tanto entusiasmo e contentamento pelo povo e pela tropa da cidade que, “espontaneamente passaram a iluminar as frentes de suas casas por três noites sucessivas” e só se ouviam pelas ruas “as vozes de Viva o Primeiro Imperador do Brasil”.

Os vereadores paulistanos decidiram repassar a novidade às Câmaras das vilas de Parnaíba, Jundiaí, Bragança e Atibaia. Também começaram a preparar a divulgação aos moradores de São Paulo: haveria guarda solene, música, instrumentos, e “os rojões necessários”.

Para garantir a participação de todos os paulistanos nas comemorações da aclamação, a Câmara determinou que teriam de iluminar a frente de suas casas por 9 dias seguidos, a partir de 12 de outubro. A lei foi fixada em locais públicos para que ninguém alegasse que não sabia da determinação. Quem não cumprisse a lei pagaria multa e seria preso, “sem ponderação”.

Em 12 de outubro, a Câmara de São Paulo também realizou uma sessão com a presença da “tropa e do povo” para aclamar o futuro imperador do Brasil. “O povo do Brasil, sendo livre e soberano como o de Portugal, tem o direito de lançar mão de todos os meios necessários para sua salvação”, afirma a Ata de Proclamação. O documento, assinado por mais de 250 políticos, militares e religiosos, foi fixado em locais públicos da cidade.  O príncipe foi coroado em 1º de dezembro de 1822 e se tornou o imperador d. Pedro I.

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Na sede da Câmara no Pátio de São Gonçalo, atual Praça João Mendes, os vereadores apoiaram e incentivaram o processo de independência do Brasil | Crédito: Benedito Calixto, Acervo Museu Paulista

O agradecimento de d. Pedro I ao apoio dos paulistanos veio em forma de decreto. Em 17 de março de 1823, declarou São Paulo uma cidade imperial, pois a província tinha sido “uma das primeiras a sustentar, a custo dos maiores sacrifícios, os direitos inauferíveis (essenciais) dos Povos do Brasil”.

Os vereadores paulistanos, em sessão de 22 de março, decidem enviar um ofício de gratidão a sua majestade pela “eleição desta cidade a cidade imperial”.  Também ficou decidido que o documento iria para o Rio de Janeiro em “um saco de damasco (tecido luxuoso) com letras douradas”.

No primeiro aniversário do Grito do Ipiranga, em 1823, os vereadores foram à Catedral da Sé assistir ao te deum laudamos, “celebrado em ação do dia de hoje, aniversário da Independência deste Império, publicado pela augusta voz de sua majestade imperial”.

Em 12 de outubro, primeiro aniversário da “memorável aclamação de sua alteza”, também houve um te deum na Sé com a presença dos vereadores. Mas as festividades foram maiores. Por decisão do governo provincial, a cidade ganhou uma iluminação festiva na véspera e na data da aclamação. Após a cerimônia religiosa, os vereadores foram ao palácio do governo para outro ato em homenagem ao “augusto senhor”, o imperador.

MONUMENTO AO GRITO

Na Câmara de São Paulo, a primeira menção à ideia de um monumento à Independência foi na sessão de 31 de agosto de 1825, na qual é lido um ofício do governo da Província solicitando que “com toda a brevidade, examinar o lugar mais conveniente, no sítio do Piranga para se levantar o monumento da independência”. Dois dias depois, os vereadores realizaram uma sessão extraordinária na Colina do Ipiranga. O local, com o apoio de cidadãos, foi escolhido para receber o monumento.

Em 12 de outubro de 1825, aniversário da conclamação e também do imperador, o presidente da Província, Lucas Antônio Monteiro de Barros, os vereadores e mais dezenas de autoridades civis, militares e religiosas foram ao Ipiranga. Barros pôs “a primeira pedra, que dá princípio ao Monumento, destinado a levar às mais arredadas eras a lembrança do memorando de 7 de setembro de 1822”. Houve “repetidos vivas ao senhor d. Pedro I, à sua augusta dinastia, à independência do Império e aos briosos habitantes desta Província”.

Mas as obras demoraram muito tempo para começar e para terminar, devido às muitas interrupções por falta de verbas. Na sessão de 5 de agosto de 1875, 50 anos depois da primeira pedra, o vereador Capitão Portilho se queixava dos atrasos e comparava a situação de São Paulo com a do Rio de Janeiro, onde já havia dois monumentos à independência: uma estátua de d. Pedro e outra de José Bonifácio.

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José Bonifácio, o Patriarca da Independência, em quadro de José Wasth Rodrigues que faz parte da coleção da CMSP | Crédito: Acervo CMSP

Na capital paulista, não há “quem não veja com desagrado a gloriosa colina, onde irrompeu o imortal brado que trouxe ao Brasil a independência, erma de um simples marco”. Portilho propôs e a Câmara aceitou criar uma comissão de vereadores e cidadãos para acelerar as obras. “Iniciemos a grandiosa empresa, confiando-a ao patriotismo dos cidadãos. Não é aqui, onde a iniciativa particular, quanto a interesses materiais e morais, tem tomado incremento a colocar nossa Província na vanguarda das outras, que se pode temer o malogro”, conclui.

Mas o Edifício-Monumento do Ipiranga (cujo nome oficial é Museu Paulista, sendo mais conhecido como Museu do Ipiranga) só foi inaugurado em 7 de setembro de 1895, quando o Brasil já era uma República. Na colina também foram feitos um jardim em estilo francês, obra do prefeito Antonio Prado, em 1909, e o Monumento à Independência do Brasil (também chamado de Altar da Pátria), inaugurado no centenário da independência.

No museu fica o quadro Independência ou morte! (ou Brado do Ipiranga), a mais famosa representação do Sete de Setembro. O pintor Pedro Américo fez uma obra grandiosa e idealizada do fato histórico. Segundo o escritor Raul Pompeia, é “uma tela que grita”.

Os historiadores Carlos Lima Jr, Lilia Schwarcz e Lúcia Stumpf, no livro O sequestro da independência, explicam que a obra “era um trabalho de encomenda, e que seguia tanto as normas acadêmicas para pinturas de história como os ditames dos governantes da época”. E concluem: “Tratava-se de imortalizar o gesto que deveria fundar a nação, ao menos no seu imaginário”.

Segundo os três pesquisadores, o quadro “foi sendo transformado na encarnação do próprio ato”, em grande parte por ilustrar muitos livros didáticos “como comprovação do fato”.

A obra de Pedro Américo influenciou inúmeras outras (quadros, tapeçarias, esculturas, performances, charges). Uma delas está no Palácio Anchieta, sede da CMSP: o relevo em bronze Grito do Ipiranga, de Adalberto Vieira.

UFANISMOS

Nas comemorações do centenário da independência, em 1922, a Câmara aprovou um pedido da Prefeitura para contratar a empresa cinematográfica Independência Film para produzir um filme sobre a cidade, a ser exibido na exposição internacional do Rio de Janeiro.

O filme teria de “dar uma ideia sucinta e integral do progresso da cidade de São Paulo até 1922, constatando fatos históricos e seu desenvolvimento industrial”. A obra recebeu aplausos no Rio. Porém, não existem mais cópias da produção.

Também se cogitou a construção de um hotel de luxo, com financiamento da Câmara, para os estrangeiros que viriam para o centenário. Mas o vereador Luciano Gualberto alertou: “É preciso que festejando o centenário de nossa independência política não nos tornemos escravos dos nossos débitos insolváveis”. A ideia não saiu do papel.

Em 1972, na ditadura militar, o tom ufanista das comemorações do sesquicentenário (150 anos) foi muito forte no País todo. A Câmara não ficou atrás. Na sessão especial de 1º de setembro daquele ano, o vereador Tibiriçá Botelho, presidente da Comissão dos Festejos do Sesquicentenário, fez um discurso enaltecendo o País.

Segundo Botelho, a realidade mostrava a “existência de um Brasil onde o progresso não é sinônimo de fome, onde todas as raças se entrelaçam sem preconceitos odientos, da Transamazônica, de um Brasil onde a tecnologia tomou lugar da improvisação, de um Brasil que democratiza a educação, que vê o futuro com serena segurança, liberto de qualquer tutoria, exceto a de Deus Nosso Senhor”.

Como parte das comemorações, umas das salas de reuniões da CMSP, no Palácio Anchieta, foi batizada de Sala Tiradentes. “Desnecessário se torna justificar o mérito da iniciativa, já que a figura de Joaquim José da Silva Xavier está nas origens da Independência de nosso País”, afirma o projeto de denominação.

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Quadro Tiradentes, do acervo da CMSP: o mártir da independência dá nome a uma medalha e a uma das salas da sede da Câmara | Crédito: Acervo CMSP

Neste século, as homenagens da Câmara à luta pela independência continuam. Em 2001, foi criada a Medalha Tiradentes para reconhecer os esforços dos policiais militares. Segundo a justificativa  da Resolução 23/2001, “o alferes exercia as funções de chefe de polícia quando participou do marcante movimento pela independência do Brasil”.

Em 2003, foi instituída a Medalha José Bonifácio, entregue anualmente aos maçons que mais se destacarem em ações benéficas à população da cidade de São Paulo. O Patriarca da Independência e a Maçonaria tiveram destaque na luta pela libertação do País.

Dois séculos depois de d. Pedro ter dado o brado retumbante, seus ecos ainda podem ser sentidos na Câmara de Vereadores. A luta pela liberdade está nos mais variados discursos, projetos e depoimentos em audiências públicas.

Edição: Sândor Vasconcelos sandor@saopaulo.sp.leg.br

SAIBA MAIS

Livros

LIMA JR., Carlos, SCHWARCZ, Lila e STUMPF, Lúcia. O sequestro da independência. Companhia das Letras, 2022.
TOLEDO, Roberto Pompeu de. A capital da solidão. Objetiva, 2012.
LEITE, Aureliano. História da municipalidade de São Paulo. Câmara Municipal, 1977.

Site

Centro de Memória CMSP

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