Mesmo com 76% de infectados, epidemia em Manaus não acabou
Estudo liderado por pesquisadores da USP mostra o que pode acontecer em outras capitais brasileiras se a propagação do vírus não for contida
Que a experiência de Manaus sirva de exemplo para outros centros urbanos: sem as devidas precauções, o novo coronavírus pode infectar rapidamente quase que toda a população de uma cidade; e o problema não acaba quando se atinge uma suposta imunidade de rebanho — apenas diminui de intensidade. Na capital do Amazonas, uma das mais castigadas pelo vírus, 76% das pessoas foram infectadas pelo SARS-CoV-2 entre março e outubro, segundo um estudo publicado hoje na revista Science, liderado por pesquisadores da USP. E a pandemia ainda está longe de terminar por lá, com 9,5 mil novos casos reportados do início de novembro até agora.
Na capital paulista, comparativamente, essa taxa de infecção — ou taxa de ataque, como também dizem os epidemiologistas — foi de “apenas” 29% no mesmo período (março a outubro), segundo os pesquisadores. “Manaus é um exemplo do que ainda pode acontecer em outras capitais”, diz a professora Ester Sabino, do Instituto de Medicina Tropical e da Faculdade de Medicina da USP, que lidera o estudo. A análise foi feita de forma retroativa, usando amostras de sangue estocadas em bancos de sangue das duas capitais. “Estamos muito longe de uma situação em que o número de infectados seja suficiente para conter o avanço da pandemia”, diz a pesquisadora ao Jornal da USP.
“Manaus é um exemplo do que ainda pode acontecer em outras capitais. Estamos muito longe de uma situação em que o número de infectados seja suficiente para conter o avanço da pandemia”
Teoricamente, num cenário hipotético em que todas as pessoas estão igualmente expostas e suscetíveis ao vírus, estima-se que a imunidade de rebanho (ou imunidade coletiva) para a covid-19 seria atingida quando 66% da população já tivesse sido infectada. Alguns grupos chegaram a propor índices até menores do que esse, na faixa de 20% a 40%, considerando diferentes modelos de interação social. O caso de Manaus, porém, mostra que a coisa é mais complicada. Os pesquisadores estimam que a transmissão do vírus só chegará ao fim por conta própria quando mais de 90% da população tiver sido infectada, o que implicaria em muito mais mortes e sequelas.
O cenário trágico dessa contaminação em massa é bem conhecido de todos: milhares de pessoas doentes, hospitais superlotados, corpos acumulados em câmaras frigoríficas e tendo de ser enterrados emergencialmente em valas comuns, sem a presença de familiares, como aconteceu em Manaus no primeiro semestre deste ano, no auge da pandemia. Mais de 3 mil pessoas já morreram de covid-19 no município. Se essa mesma taxa de ataque fosse registrada em São Paulo, o número de mortes na capital paulista por covid-19 seria mais do que o dobro do registrado até agora (cerca de 15 mil), segundo os pesquisadores.
Considerando a população total de Manaus, de 2,2 milhões de habitantes, 76% de incidência significa que mais de 1,6 milhão de pessoas foram infectadas pelo SARS-CoV-2 desde o início da pandemia — uma taxa de infecção muito mais elevada do que a sugerida por outros métodos. Pelos dados oficiais, divulgados pela Fundação de Vigilância em Saúde do Amazonas, o município acumulava, até a primeira semana deste mês, cerca de 73 mil casos confirmados de covid-19 — o que resultaria numa taxa de infecção de 3,3%, considerando apenas os casos sintomáticos, confirmados por exame molecular (tipo PCR). Já um estudo por testagem rápida, conduzido pela Universidade Federal de Pelotas (dentro do projeto Epicovid-19 BR) e publicado na revista The Lancet, estimou essa prevalência em 14,6% da população manauara, em junho.
Este novo estudo na Science, por sua vez, utilizou uma metodologia diferente: os testes não foram feitos diretamente na população, mas em amostras de sangue armazenadas na Fundação Hospitalar de Hematologia e Hemoterapia do Amazonas (Hemoam) e na Fundação Pró-Sangue – Hemocentro de São Paulo. A lei brasileira exige que os hemocentros guardem uma amostra de todas as doações de sangue que recebem por pelo menos seis meses. Isso permitiu que os pesquisadores “voltassem no tempo” e documentassem a evolução da pandemia em diversas capitais brasileiras desde o seu início, usando a presença de anticorpos específicos no sangue como evidência de infecção prévia pelo SARS-CoV-2. Além de Manaus e São Paulo, o estudo está sendo realizado em seis outras cidades (Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba, Recife, Fortaleza e Salvador), com resultados previstos para o início de 2021.