Como profissionais de saúde podem identificar e ajudar mulheres vítimas de violência 

Por Mariane Mansuido | 18/10/2020

A violência contra a mulher é um problema de várias frentes no Brasil e, com a pandemia, ficou claro que ainda estamos distantes de uma solução: as denúncias recebidas pelo canal 180 (Central de Atendimento à Mulher) cresceram quase 40% no mês de abril deste ano, em relação ao mesmo mês de 2019, de acordo com dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.

Muito se fala sobre as razões por trás desse gargalo social, como fatores culturais, falta de rede de apoio e falhas na segurança pública, por exemplo. Mas no que se refere à prevenção e combate a essas duras estatísticas, o setor da saúde tem um papel central: é pela porta de uma UBS (Unidade Básica de Saúde) ou pronto-socorro, muitas vezes, que profissionais se deparam com casos de violência física, psicológica e sexual contra a mulher. Mas quais são os protocolos nessa hora? Como esse profissional deve agir?

Sinais de violência

A violência, não necessariamente, precisa estar explícita no corpo da mulher para indicar situações de agressão. Antes de iniciar uma conversa, é preciso que o profissional esteja aberto ao diálogo, disposto a ouvir e acolher uma vítima que ainda tem vergonha e medo de contar o que sofreu.

De acordo com Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira, professora do Departamento de Medicina Preventiva da FMUSP (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo) e pesquisadora da área de violência de gênero e saúde, a dor crônica sem solução é um dos principais indicadores. “O problema, no caso, está baseado num sofrimento que geralmente é crônico, que é o sofrimento da violência doméstica”, explicou.

“Sempre que o profissional desconfiar, ele deve perguntar. Mas muitos profissionais entendem que isso não é do escopo do trabalho da saúde”, esclareceu. “Então, o esforço é para uma assistência que seja mais integral e leve em consideração o contexto da pessoa e não apenas da patologia”, complementou a médica.

Também há outros sinais que costumam estar atribuídos à violência e que podem contribuir para um atendimento mais ativo do profissional, como casos de depressão, problemas relacionados à saúde reprodutiva, DSTs (Doenças Sexualmente Transmissíveis), abortos, queixas vagas e uso continuado do serviço com pouca resolução.

Abordagem e preparo

É preciso compromisso das instituições de saúde com o treinamento de seus profissionais, elaboração de protocolos e informações sobre a rede intersetorial para que não só seja possível identificar os casos e notificá-los, mas também encaminhar as vítimas para o serviço mais adequado.

Para a professora da FMUSP, tanto o Ministério da Saúde quanto Secretarias de Saúde devem pensar que a atenção primária oferece espaços, como postos e ambulatórios, que podem identificar casos de violência, fazer o primeiro acolhimento e referir para os serviços especializados. Por outro lado, Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira explica que muitos conceitos ainda dificultam esse trabalho, como a ideia de que a medicina trata apenas doenças do corpo e não interfere em questões sociais.

“Na falta de protocolos claros, os profissionais agem conforme suas opiniões pessoais. Eles até podem ser contra a violência, mas não percebem que apoiar aquela mulher, e acabar com a violência, faz parte do trabalho de cuidado para as queixas que estão sendo trazidas ao serviço de saúde”, afirmou a médica.

É importante reforçar ainda que é por meio da crescente notificação de casos de violência contra a mulher que esse assunto ganha cada vez mais relevância e o Poder Público é obrigado a tomar atitudes e criar políticas públicas destinadas a resolver esse problema. E para avançar nesse tema, é preciso treinamento. “Além de fazer a ficha, médicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes sociais podem ser bem treinados,  acolher, não julgar, não revitimizar a mulher, e oferecer caminhos para ela lidar com isso”, explicou d’Oliveira.

Serviços especializados

No Brasil, a repercussão dos casos costuma estar centrada nos serviços especializados que oferecem atendimento a vítimas de violência sexual para prevenção, profiláxia, e também aborto legal. São serviços que, de acordo com d’Oliveira, estão concentrados nas grandes cidades e são poucos.

“Os profissionais que estão na ponta fazem um esforço muito grande, mas o suporte gerencial ainda é muito pequeno, e estamos vivendo em um momento em que as verbas estão sendo retiradas, então é muito duro manter a qualidade dos serviços que estão sendo fechados ou sucateados”, argumentou a médica.

Para ampliar esse atendimento para todos os tipos de violência, d’Oliveira reforça a necessidade de uma rede intersetorial entre Saúde, Assistência Social e Poder Judiciário. “Há muito desconhecimento dessa rede, o que é um obstáculo para que os profissionais escutem, pois eles não sabem o que fazer e não conhecem os serviços que atendem”.

Apoio da lei

Vale lembrar também que o profissional da saúde é obrigado, por lei, a notificar o atendimento de mulheres vítimas de violência. A Lei nº 10.778/2003 obriga os serviços de saúde, públicos ou privados, a notificar casos suspeitos ou confirmados de violência de qualquer natureza contra a mulher. Nesse rol, está incluso os profissionais de saúde, como médicos e enfermeiros, e também os estabelecimentos, como postos e hospitais.

Um recente atualização desta legislação, em 2019, também determina que, se houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher nos serviços de saúde, é obrigatório comunicar à autoridade policial no prazo de 24 horas, para as providências e fins estatísticos.

Ana Flávia Pires Lucas d’Oliveira também lembra que a Lei Maria da Penha prevê que toda a rede envolvida tenha treinamento em gênero, direitos humanos, raça, etnia, ainda que não seja implementado. “Tem um déficit muito grande entre a política pública e a sua implementação concreta. As redes tendem a ser muito pessoais e pouco institucionais, mais baseadas no encaminhamento de mulheres que já se reconhecem vítimas da violência”.

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