Ainda que o cerne da discussão sobre a violência doméstica no Brasil sejam as vítimas, e com razão – uma mulher é agredida no país a cada quatro minutos – também é fato que muitos dos homens violadores permanecem livres perpetuando o ciclo da violência. E é para atuar nesta outra frente que existem os centros de reabilitação para agressores.
Também conhecidos como grupos reflexivos, funcionam como espaços de educação e reabilitação com acompanhamento psicossocial. Sob orientação de uma equipe multidisciplinar e capacitada no assunto, esses homens têm a oportunidade de entender a gravidade dos atos que cometeram, serem conscientizados e, assim, diminuir a reincidência.
Até o início deste ano, não havia previsão legal sobre esse encaminhamento. A decisão ficava a cargo da Justiça, que pode aplicar outras medidas para resguardar a incolumidade física das vítimas, mesmo que não constem de forma expressa na Lei Maria da Penha.
Mudança na legislação
A Lei Federal nº 13.984/20, sancionada em abril, incluiu no texto da Lei Maria da Penha a previsão de encaminhar o agressor a centros de reeducação no rol das medidas protetivas, uma decisão que a Justiça pode tomar desde o início do processo criminal, e que é de cumprimento obrigatório.
Para a juíza da 2ª Vara Criminal da Comarca de Santo André e coordenadora do Anexo da Violência Doméstica e Familiar do órgão, Teresa Cristina Santana, a alteração reforça as decisões judiciais anteriores que já faziam esse encaminhamento, contribui para que a sociedade reflita sobre os fundamentos dessa violência, e também chama atenção da medida como uma política de enfrentamento à violência de gênero, doméstica e familiar.
“Isso de nenhuma forma vai interferir na responsabilização do homem autor de violência”, explicou Santana, que trabalha com casos de violência doméstica desde 2014, “mas sim, na maneira como nós, sociedade, tratamos a responsabilização, pois ela não precisa coincidir, necessariamente, com o encarceramento”.
A previsão da medida também pode contribuir para que o agressor frequente um centro de reabilitação desde o início da investigação e, quanto mais cedo for essa inserção, melhores os resultados, na avaliação de Santana. “Existe uma estrutura patriarcal, uma cultura sexista, que impulsiona a praticar violência todos os dias. Se essa análise da conduta não for feita o quanto antes, o agressor vai continuar a praticar outras violências contra outras mulheres”.
Grupos reflexivos
O projeto Tempo de Despertar é um dos pioneiros. Idealizado em 2014 pela promotora de justiça Gabriela Manssur, em Taboão da Serra, atende homens autores de violência contra a mulher com inquérito policial, medida protetiva ou processo criminal em curso, com exceção para casos de feminicídio ou violência sexual.
“Os homens chegam negando o ato, justificando pelo uso de drogas ou bebida. Outros chegam com muita raiva, sentindo-se injustiçados”, contou Sérgio Barbosa, coordenador dos grupos reflexivos do Tempo de Despertar em São Paulo. O projeto, que é dividido em dez encontros, trabalha variados temas como masculinidade, machismo, sexualidade, álcool e drogas, gênero, direitos das mulheres, entre outros.
De acordo com Barbosa, a taxa de reincidência dos atendidos não passa de 2%, uma mudança de comportamento e pensamento alcançada graças a um processo educativo. “Fazemos um processo pedagógico para que esse homem encontre as contradições do seu próprio discurso, atos, e perceba com isso a violência que praticou. É um processo reflexivo porque torna possível que o homem compreenda as origens dessa violência, como o machismo e o patriarcado”, afirmou.
Política Pública
Em São Paulo, a legislação municipal só passou a prever esse tipo de iniciativa com a promulgação da Lei nº 12.732, de 2017, que instituiu o Programa Tempo de Despertar na capital paulista, e que leva o nome do projeto do Ministério Público de São Paulo, que inspirou a proposta de lei.
O Tempo de Despertar já operava na cidade, com casos oriundos das sete Varas de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher da capital, mas somente no início deste ano esse trabalho se tornou uma política pública por meio de um convênio com a Prefeitura de São Paulo. “Foi assinado um acordo para que houvesse atividades voltadas a homens autores de violência na cidade durante 12 meses, mas a pandemia interrompeu o projeto”, informou Barbosa. A expectativa era atender 800 homens, mas apenas 130 foram contemplados com o retorno dos grupos de forma virtual.
Para a juíza Teresa Cristina Santana, esses espaços de reeducação devem ser uma política de Estado e de segurança pública permanentes, com articulação de todas as esferas do Poder para garantir a implantação e a dotação orçamentária contínuas. “A gente precisa atender a mulher em situação de violência, isso é uma prioridade, lembrando sempre que nenhuma mulher sai sozinha dessa situação, e assim também o homem, sem que nenhum tipo de avaliação, reflexão seja feita”, declarou.