O Brasil tem um estupro a cada oito minutos, segundo o último Anuário de Segurança Pública divulgado este ano, com base em BOs (Boletins de Ocorrência) de estupro e estupro de vulnerável registrados em 2019. O balanço mostrou que a maioria — 85,7% — é do sexo feminino. Apesar do medo e do trauma psicológico, o cuidado com a saúde das vítimas desse tipo de violência não pode esperar.
Serviços de saúde não exigem BO
“Quando alguém sofre abuso sexual, a primeira pergunta a se fazer não é se já foi à polícia, mas sim, quando foi [o abuso], há quanto tempo”, disse a interlocutora de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher da Secretaria Municipal de Saúde, Márcia Valéria Pereira. De acordo com a profissional, todos os equipamentos da rede estão habilitados a receber vítimas desse tipo de violência, providenciar o atendimento disponível na unidade ou encaminhar para o serviço mais adequado, inclusive as UBSs (Unidades Básica de Saúde), sem a necessidade de apresentar um boletim de ocorrência.
“A saúde é a primeira porta, depois vem a questão policial”, declarou. Márcia Valéria explica que, quanto mais cedo o serviço de saúde por procurado, maiores as chances de evitar problemas que agravem ainda mais a situação da vítima. “Temos a anticoncepção de emergência, que é a pílula do dia seguinte, disponível em todas as unidades. Se a mulher engravidar após essa violência, a vida vai ficar muito mais difícil”, explicou Márcia, enfatizando que as vítimas também podem procurar o serviço de aborto legal, que também não exige boletim de ocorrência.
Prevenção de urgência
Não é só uma gravidez indesejada que pode marcar ainda mais o sofrimento de quem passou por um abuso sexual. As ISTs (Infecções Sexualmente Transmissíveis) são outro grande risco para as vítimas e, nesse aspecto, a rede pública municipal também pode ajudar. Pelo menos 60 equipamentos de saúde na cidade estão habilitados a oferecer a PEP (Profilaxia Pós-Exposição de Risco), um serviço de urgência que previne a infecção pelo HIV, hepatites virais, e outras infecções sexualmente transmissíveis, conforme explica o coordenador de Assistência da Coordenadoria de IST/Aids da Secretaria Municipal de Saúde, Robinson Fernandes de Camargo.
“É uma profilaxia que usa antiretrovirais para qualquer exposição ao HIV; para casos de sexo consentido, porém com risco; e violência sexual”, informou Camargo. Segundo ele, o serviço está disponível em prontos-socorros e AMAs (Assistência Médica Ambulatorial), é totalmente gratuito e disponível para todas as pessoas. Para garantir a eficácia, que é de 99,9%, a recomendação é buscar o atendimento em, no máximo, 72 horas.
“Quanto mais perto do evento, melhor os efeitos. Passando de 72 horas, a gente não tem mais indicação para fazer a profilaxia para HIV”, esclareceu o médico, destacando que, após esse período, ainda pode ser ofertada a profilaxia para sífilis, gonorreia, hepatite B, e a anticoncepção de emergência.
Em relação ao HIV, o tratamento pode ser iniciado nas primeiras duas horas após a exposição, e os medicamentos devem ser tomados durante 28 dias sem interrupção, um processo que é acompanhado pelas equipes do SAE (Serviço de Assistência Especializada) por 90 dias, com a realização de testagem para o HIV e monitoramento de efeitos colaterais, que costumam ser leves, como dores de cabeça.
Sigilo garantido
Segundo Márcia Valéria, os serviços de saúde não fazem denúncias de abuso sexual à polícia. “Nós não chamamos a polícia porque cada mulher tem condições de avaliar a sua segurança naquele momento” declarou. “É importante que se denuncie para a responsabilização do agressor, mas essa é uma decisão da mulher”.
Uma das frentes de trabalho, de acordo com a profissional, são os Núcleos de Prevenção à Violência, grupos compostos por profissionais da rede intersetorial especializados em oferecer atendimento humanizado e qualificado, e que podem encaminhar para outros serviços da rede socioassistencial. “Estamos trabalhando na capacitação dessas pessoas para acolher essa mulher, explicar os direitos que ela tem, que ela não precisa ficar assustada porque a Saúde é um lugar seguro, que trabalhamos com sigilo e que ninguém vai expô-las”.
Ainda que não muito abordado pela sociedade, Márcia Valéria alerta para os casos de estupro que acontecem dentro dos relacionamentos e que, nem sempre, as mulheres têm a consciência de que sofreram um abuso pelos seus parceiros. “Muitas pessoas pensam que estupro é um estranho num beco escuro, não é assim”, afirmou. “Boa parte dos estupros são cometidos pelos próprios companheiros, e as mulheres nem sabem que aquilo foi estupro, que sexo contra a vontade dela é estupro”.
Também de acordo com a interlocutora de Prevenção, Assistência e Combate à Violência Contra a Mulher, ainda que dentro de um relacionamento estável, ou de forma casual, qualquer ato sexual feito sem o consentimento da mulher, por pressão, ou enquanto a vítima estava inconsciente — seja por efeito de álcool ou drogas — corresponde a um estupro e a mulher tem direito a acessar todos os procedimentos legais previstos.