ACJ – Parecer nº 172/04.
Ref.: Processo nº 1625/2003.
Interessado(s): Grupo de coordenação dos trabalhos referentes ao Ato 821/03; servidores cujos números de registro funcional foram relacionados na Decisão de Mesa publicada no DOM/SP de 18/12/2003, página 63, 3ª coluna; Mesa Diretora.
Assunto: “Gratificação de Apoio ao Legislativo – GAL, não recepcionada pela EC 19/98”. Item 3.4 do Relatório de Inspeção (Terceira e Última Parte) do TCM/SP. Recomendação de revisão dos atos administrativos de declaração de permanência da GAL, ou de sua concessão, após a vigência da Emenda Constitucional nº 19/98, para cessação do pagamento, mediante o devido processo legal. Princípio da recepção: irrelevância da forma legislativa anterior, desde que válida à época de sua edição; requisito de compatibilidade entre o conteúdo da norma infraconstitucional válida anterior e o novo ordenamento constitucional adstrito a esse mesmo conteúdo. Recepção das Resoluções sobre a GAL pela EC 19/98. Recomendação de recurso de revisão deste ponto da decisão do TCM.
Sr. Advogado Supervisor,
A Secretaria Geral Administrativa enviou estes autos para manifestação desta Assessoria e Consultoria Jurídica, em atendimento ao r. despacho de fls. 196 do Exmo. Sr. Presidente.
I – Introdução
Trata-se do procedimento instaurado a partir do encaminhamento, pelo Grupo de coordenação dos trabalhos referentes ao Ato nº 821/03 à Egrégia Mesa da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP), do “levantamento dos servidores que se encontram na situação apontada” no “item 3.4 do Relatório de Inspeção (Terceira e Última Parte) do Egrégio Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM/SP), que trata da ‘Gratificação de Apoio ao Legislativo – GAL, não recepcionada pela EC 19/98’ e recomenda” – o referido item do Relatório de Inspeção – “a elaboração de levantamento identificando todos os servidores efetivos, titulares de cargo em comissão e comissionados, e inativos, que, após 5.6.98, tornaram permanente a GAL ou vêm recebendo o benefício, concedido após essa data, para cessação do pagamento mediante o devido processo legal” (fls. 01 a 16).
Os presentes autos consubstanciam o devido processo legal supra mencionado.
II – A decisão da Mesa e os seus fundamentos
2.1. Após autuação do referido levantamento, em prosseguimento a E. Mesa exarou a respeitável decisão de fls. 18, publicada na edição do dia 18/12/2003, p. 63, do Diário Oficial do Município de São Paulo (DOM/SP).
Nos termos da referida publicação, o E. Colegiado Diretivo, tendo em conta o princípio da ampla defesa, previsto no inciso LV do artigo 5º da Constituição Federal, deliberou determinar a intimação dos servidores então relacionados, para manifestarem-se, querendo, no procedimento estabelecido com vistas à cassação, por invalidação, dos “efeitos de permanência da Gratificação de Apoio ao Legislativo, obtida após 05.06.98” (fls. 18).
2.2. Os fundamentos e o teor da r. decisão podem ser assim consignados:
“Considerando o teor do relatório de auditoria elaborado pelo Egrégio Tribunal de Contas do Município na folha de pagamento dos servidores desta Câmara Municipal, que aponta várias irregularidades, dentre elas o pagamento da Gratificação de Apoio ao Legislativo – GAL aos servidores que a tornaram permanente ou incorporaram como vantagem de cargo, após 05.06.98, data da edição da Emenda Constitucional nº 19/98;
Considerando que a referida Gratificação foi instituída pela Resolução 8/90 para todos os servidores do Legislativo, em percentuais variáveis segundo o nível do cargo/função exercido pelo servidor e que a Resolução 06/93 previu a permanência da GAL nos termos da Lei 10.442/88 (5 anos de percepção, sendo 1 ano para permanência do maior valor), considerando, na contagem do prazo para a permanência, como sendo da mesma natureza, as gratificações concedidas sob diferentes fundamentos;
Considerando que, segundo o referido relatório, essas Resoluções não foram recepcionadas pela Emenda Constitucional nº 19/98, ‘devendo ser revistos todos os atos de concessão que nela se fundamentaram após a data da publicação dessa Emenda (05.6.98) e que ‘a revisão deve ser feita com efeito retroativo àquela data, podendo ser dispensada a devolução dos valores recebidos, tendo em vista a boa-fé dos servidores que os receberam com base em resolução da Câmara Municipal;
Considerando, ainda, a recomendação de que a Câmara deva identificar ‘todos os servidores efetivos, titulares de cargos em comissão e comissionados, e inativos, que, após 5.6.98, tornaram permanente a GAL ou vêm recebendo o benefício, concedido após essa data, para cessação do pagamento (códigos 187 e 188), mediante o devido processo legal;
Considerando os princípios da LEGALIDADE;
Considerando o princípio da ampla defesa, previsto no inciso LV, do art. 5º, da Constituição Federal (…);
A MESA DA CÂMARA DECIDE determinar a intimação, (…) dos servidores efetivos ativos, comissionados e cargos em comissão, e (…), dos servidores inativos, abaixo relacionados, para manifestação, se assim o desejarem, quanto à cassação, por invalidação, dos alegados efeitos de permanência da Gratificação de Apoio ao Legislativo, obtida após 05.06.98, (…)” (fls. 18; original sem os negritos).
2.3. Do que relatado, bem como pelo cotejo da fundamentação e da parte dispositiva com a relação dos registros funcionais dos servidores cuja intimação foi determinada conforme supra, verifica-se que o objeto dos presentes autos consiste no desiderato de dar o devido encaminhamento à r. decisão da E. Mesa (tomada com base em recomendação contida em Relatório de Inspeção aprovado por r. acórdão do E. TCM/SP), no sentido de – mediante o devido processo legal em que oportunizados o contraditório e a ampla defesa assegurados no art. 5º, LV da Constituição Federal (CF) –, serem tomadas as providências legais cabíveis com vistas à cassação, por invalidação, dos efeitos de permanência e de concessão da Gratificação de Apoio ao Legislativo (GAL), obtidas a partir do dia 05 de junho de 1998, data da publicação da Emenda Constitucional nº 19/98 (EC nº 19/98) – tudo, ao proclamado fundamento de que, segundo o referido Relatório do E. TCM, a Resolução nº 08/90 (que instituiu a GAL, entre outras providências) e a Resolução nº 06/93 (que, entre outras medidas, dispôs sobre a aplicação à GAL do instituto da permanência previsto na Lei Municipal nº 10.442/88 e indicou as regras de permanência dessa vantagem pecuniária aos servidores que a percebessem nas condições estabelecidas) não foram recepcionadas pela EC nº 19/98.
III – Os antecedentes da decisão da Mesa e os respectivos fundamentos
3.1. De observar-se, desde logo, que a premissa que tem permeado as diversas etapas anteriores do tratamento da questão nestes autos, por parte da Administração deste Legislativo, a título de principal – senão exclusivo – fundamento jurídico e razão de decidir na espécie, consiste no já mencionado entendimento no sentido da não-recepção das Resoluções 08/90 e 06/93 pela EC nº 19/98.
Referido entendimento, entretanto, foi contestado em diversos dos arrazoados constantes das respostas apresentadas por funcionários intimados, que poderão ser atingidos pelo que restar decidido no presente procedimento.
Cumpre então, inicialmente, com vistas a carrear elementos que possam contribuir ao deslinde e encaminhamento da matéria, delinear uma seqüência de eventos que antecederam a decisão em pauta, que retratam as circunstâncias e os elementos como tal entendimento teve sua origem e configuração nos presentes autos, para depois, em prosseguimento, perquirir e avaliar acerca de sua sustentabilidade.
3.2. O Relatório da FGV e a Análise Jurídica constante de seu Anexo II
Com data de 30 de maio de 2002, a Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV) apresentou o “Relatório Final do Planejamento da Reforma Administrativa”, produto da Consultoria em Reforma Administrativa que lhe fora encomendada pela e. Mesa da Edilidade paulistana.
Entre as recomendações apresentadas no Relatório Final da FGV, figurou no seu tópico 3.2 a realização de uma Auditoria na Folha de Pagamentos visando localizar e sanar falhas e irregularidades no processamento e pagamento dos vencimentos dos servidores da Câmara.
Foi também apresentada, como parte integrante e Anexo II daquele Relatório, uma Análise Jurídica dos principais aspectos jurídicos considerados, sob a forma de parecer, subscrito pela Dra. Maria Sylvia Zanella Di Pietro, ilustre Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Na busca de elucidação sobre quais os correspondentes fundamentos, o tópico “3.4.1. GRATIFICAÇÃO DE APOIO AO LEGISLATIVO – GAL” desse parecer pode ser considerado como a exposição mais articulada que se encontrou acerca do apontado entendimento, no sentido da não-recepção das mencionadas Resoluções instituidoras e regulamentadoras da GAL.
Mais adiante examinaremos essa exposição, pois a ela se remete o cerne da fundamentação de todos os atos desde então adotados pela Administração no concernente à matéria em pauta.
Por ora, mostra-se oportuno concluir a indicação das etapas, circunstâncias e elementos que resultaram na questão ora em exame.
3.3. A auditoria do TCM na folha de pagamentos da CMSP
3.3.1. Conforme recomendado no item 3.2 do Relatório Final da FGV, o então Presidente da Câmara Municipal solicitou ao E. Tribunal de Contas do Município, por meio do Ofício nº 1293/2002 (cf. fls. 181), de 27 de junho de 2002, a designação de equipe especializada a fim de realizar auditoria na folha de pagamento da Edilidade, visando à análise individualizada da legalidade e da regularidade de todos os vencimentos pagos aos servidores do quadro ativo, bem como dos proventos pagos aos aposentados.
3.3.2. Os Relatórios de Inspeção da Equipe Técnica
A auditoria solicitada foi realizada no bojo do Processo TC nº 72.002.911.02-25, em que foram elaborados pela Equipe Técnica do E. TCM três relatórios de inspeção, a saber: Relatório de Inspeção (Parcial); Relatório de Inspeção (Parcial – 2); e Relatório de Inspeção (Terceira e Última Parte).
3.3.3. O Acórdão do TCM
No DOM/SP do dia 08/08/2003, pp. 71/72 foi publicado o acórdão do E. Tribunal de Contas do Município relativo à mencionada auditoria. No tocante à questão ora em pauta, assim constou no r. decisório:
“ACORDAM os Conselheiros do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, à unanimidade, de conformidade com o relatório e voto do Relator, em conhecer das auditorias realizadas, bem assim em determinar a remessa, à Câmara Municipal de São Paulo, de cópias dos relatórios correspondentes, inseridos às folhas 280 a 302, 491 a 528 e 590 a 642 dos autos, com recomendação à sua Mesa Diretora para que promova as medidas saneadoras sugeridas pela equipe multidisciplinar de técnicos desta Corte, incumbida dos exames realizados, a saber: (…)
2) Proceder ao levantamento de todos os servidores da Câmara Municipal, para os quais foi tornada permanente a Gratificação de Apoio ao Legislativo – GAL ou vêm recebendo o benefício após essa data, para o fim de anular os atos concessivos mediante procedimento administrativo próprio. Tal levantamento deverá alcançar também os servidores que incorporaram aludida gratificação como vantagem de cargo, igualmente suscetível de anulação.
3) (…)” (Sem estes negritos no original.)
3.3.4. Esclareça-se que o presente procedimento trata apenas dos servidores para os quais foi tornada permanente e dos que tiveram a concessão da GAL após a data da EC nº 19/98, ou seja, os casos referidos na primeira parte da recomendação de nº 2, logo antes transcrita.
3.3.5. Conforme já registrado, foi com base nas recomendações constantes dos Relatórios e do Acórdão da auditoria do E. TCM que a E. Mesa da Câmara tomou a deliberação comentada. Por sua vez, como também já assinalado, a fundamentação jurídica que sustenta a recomendação do E. TCM, no ponto em apreço, remete-se, por via do acolhimento dos mencionados Relatórios de Inspeção, ao correspondente tópico (item 3.4.1) da aludida Análise Jurídica constante do Anexo II ao Relatório da FGV, da lavra da profª. Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
Cumpre então examinar essa fundamentação, perquirindo em seguida acerca do seu cabimento.
IV – A fundamentação da tese da não-recepção das Resoluções nº 8/90 e nº 6/93 (quanto à GAL) pela EC nº 19/98
4.1. Peço vênia para transcrever, deste tópico do parecer da ilustre jurista, toda a parte referente ao ponto em análise, vazada como a seguir se transcreve.
“3.4.1. GRATIFICAÇÃO DE APOIO AO LEGISLATIVO – GAL”
“Essa gratificação foi instituída pela Resolução nº 8, de 19.10.90, para os integrantes do Quadro Pessoal Legislativo e para os servidores contratados sob o regime de CLT que estivessem exercendo suas atividades profissionais nas unidades da Secretaria da Câmara Municipal de São Paulo e nos Gabinetes de Vereadores, na forma especificada pela própria Resolução.
Com relação a essa gratificação, o primeiro aspecto a ser analisado diz respeito ao fato de ter sido instituída por meio de Resolução da Câmara.
A competência para a fixação de vencimentos dos servidores do Poder Legislativo tem sido alterada no âmbito do direito positivo.
Na vigência da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 1/69, tratava-se de matéria de lei de iniciativa do Legislativo. Tanto a Câmara dos Deputados como o Senado tinham competência privativa para propor projetos de lei que ‘criem ou extingam cargos de seus serviços e fixem os respectivos vencimentos’ (art. 40, inciso III, e art. 42, inciso IX, respectivamente).
Paralelamente, a Lei Orgânica do Município de São Paulo, então vigente (Decreto-lei complementar nº 9, de 31.12.69), atribuía competência exclusiva à Mesa da Câmara para a iniciativa dos projetos de lei que ‘criem, alterem ou extingam cargos dos serviços da Câmara e fixem os respectivos vencimentos’.
Vale dizer que toda a fixação de vencimentos dos servidores da Câmara somente podia ser feita por lei.
Com a Constituição de 1988, em sua redação original, a competência passou a ser de cada de [sic] uma das Casas do Congresso, conforme artigos 51, IV, e 52, XIII, que, respectivamente, atribuíam à Câmara dos Deputados e ao Senado, de forma idêntica, a competência para ‘dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias.’
Seguindo o modelo federal, a Lei Orgânica do Município, de 4.10.90, [sic; data correta: 04.04.90] deu competência privativa à Câmara Municipal para ‘dispor sobre sua organização, funcionamento, polícia, criação, transformação ou extinção dos cargos, empregos e funções de seus serviços e fixação da respectiva remuneração, observados os parâmetros estabelecidos na lei de diretrizes orçamentárias’.
Quando baixada a Resolução nº 8, de 19.10.90, que instituiu a GAL, já estava em vigor a Constituição de 1988 e a atual Lei Orgânica do Município, que é de 4.4.90. Portanto, a competência para instituição da gratificação podia ser exercida validamente pela Câmara Municipal, por meio de Resolução.
É verdade que a lei Orgânica, no artigo 94, expressamente estabelece que:
‘Artigo 94 – As vantagens de qualquer natureza só poderão ser instituídas por lei e quando atendam efetivamente ao interesse e às exigências do serviço público’.
Existe certa contradição entre esse dispositivo, inserido no capítulo pertinente aos servidores públicos municipais, e o artigo 14, inciso III, que deu competência à Câmara para a fixação de vencimentos dos seus cargos, empregos e funções. Partindo do princípio de que, em caso de contradição entre dois dispositivos contidos na mesma lei, não se pode dar a um deles interpretação que retire total eficácia do outro, tem-se que entender, em uma interpretação harmoniosa, que o artigo 94 aplica-se aos servidores do Poder Executivo. Essa interpretação é a mais aceitável até meso em face da Constituição Federal, que em sua redação original, também atribuía igual competência ao Poder Legislativo” (Análise Jurídica – Anexo II ao Relatório da FGV, cit., pp. 19-20; grifos conforme original).
4.2. Neste passo, mostra-se oportuno um breve parêntese para duas observações sobre o que já transcrito.
4.2.1. A primeira, relativamente à interpretação supra no sentido de que “o artigo 94 aplica-se aos servidores do Poder Executivo”, para acrescentar que, no que tange à remuneração dos servidores do Legislativo, a palavra “lei” nele contida – considerando-se o critério interpretativo da harmonização dos dispositivos, bem como o sistema constitucional de iniciativa legislativa e competência então vigente – só podia admitir o sentido de diploma legal da espécie Resolução, que, dentre as espécies legislativas previstas no art. 34 da Lei Orgânica do Município de São Paulo (LOM-SP), era aquela apropriada para veicular a matéria em questão, então de competência privativa do Legislativo, a teor dos mencionados arts. 14, III da Lei Orgânica do Município de São Paulo (LOM-SP) e 51, IV e 52, XIII da CF, todos em suas redações originais.
4.2.2. A segunda, para notar que a eminente parecerista não aponta qualquer vício relativo à forma (Resolução) dos indigitados veículos legislativos relativos à GAL. Muito ao contrário, conforme pouco antes transcrito, reconheceu expressamente que: “a competência para instituição da gratificação podia ser exercida validamente pela Câmara Municipal, por meio de Resolução”. Aliás, dizer o contrário equivaleria a inquinar de invalidade a própria criação da referida vantagem pecuniária – alvitre esse, porém, que sendo mesmo, no caso, inteiramente descabido, resultou desautorizado pelos termos da manifestação da i. Professora.
4.3. Feitas as observações, vamos retomar a transcrição do r. parecer, que assim prossegue:
“No entanto, com a Emenda Constitucional nº 19, de 4.6.98, os artigos 51, IV, e 52, inciso XIII, da Constituição Federal, foram alterados, voltando à sistemática da Constituição de 1967, em que a fixação de vencimentos tem que ser feita por lei de iniciativa da Câmara e do Senado. Pela redação atual, é da competência privativa das duas Casas do Congresso, apenas a iniciativa de lei para a fixação da remuneração dos cargos, empregos e funções de seus serviços.
Em conseqüência, os Municípios não poderiam manter a competência da Câmara para a fixação de vencimentos. Vale dizer que o artigo 14, III, da Lei Orgânica do Município não foi recepcionado pela Emenda Constitucional nº 19/98.
É oportuno lembrar o entendimento do Supremo Tribunal Federal no sentido de que as normas referentes ao processo legislativo são de aplicação obrigatória para os Estados. Na Revista Trimestral de Jurisprudência nº 151/425, existe referência a acórdão com a seguinte ementa:
‘Processo legislativo: consolidação da jurisprudência do STF no sentido de que – não obstante a ausência de regra explícita na Constituição de 1988 – impõe-se à observância do processo legislativo dos Estados-membros as linhas básicas do correspondente modelo federal, particularmente as de reserva de iniciativa…’
A justificativa está em que tais normas dizem respeito ao princípio da independência e harmonia dos poderes, ao qual se vinculam compulsoriamente os ordenamentos das unidades federadas.
Também em decisão proferida na ADIN 1434-0/SP, decidiu o STF, que ‘as regras básicas do processo legislativo federal são de absorção compulsória pelos Estados-membros em tudo aquilo que diga respeito – como ocorre às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada – ao princípio fundamental de independência e harmonia dos poderes, como delineado na Constituição Federal’ (Diário da Justiça, Seção I, 3.2.2000, p. 3).
4.4. Na seqüência, assim continua a Análise Jurídica:
Além disso, ainda que não fosse obrigatória a adoção, pelos Municípios, das normas referentes ao processo legislativo, a necessidade de lei para a concessão de vantagens pecuniárias decorreria do artigo 37, inciso X, da Constituição Federal, aplicável a todos os níveis de Governo e a todos os Poderes, por força do caput do dispositivo, que está assim redigido, a partir da Emenda Constitucional nº 19/98:
‘Artigo 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
X – a remuneração dos servidores públicos e o subsídio de que trata o § 4º do art. 39 somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, assegurada revisão geral anual, sempre na mesma data e sem distinção de índices;’ ” (Análise Jurídica – Anexo II ao Relatório da FGV, cit., pp. 20-21; original sem o negrito e com os grifos).
4.5. E em seguida, pondo em marcha a questão em apreço, a insigne parecerista assim conclui suas considerações sobre a matéria:
“A conclusão, portanto, é no sentido de que a Resolução nº 8/90, com alterações posteriores, não foi recepcionada pela Emenda Constitucional nº 19/98, na parte referente à GAL, devendo ser revistos todos os atos de concessão que nela se fundamentaram após a data de publicação dessa Emenda (5.6.98). A partir dessa data, ficaram vedadas novas concessões, porque a resolução em que se fundamentavam ficou implicitamente revogada com a entrada em vigor da referida Emenda à Constituição. A revisão deve ser feita com efeito retroativo àquela data, podendo ser dispensada a devolução dos valores recebidos, tendo em vista a boa-fé dos servidores que os receberam com base em Resolução da Câmara Municipal” (idem, p. 21).
4.6. Do que visto e transcrito, infere-se que a ilustre parecerista manifestou entendimento no sentido de que, relativamente às inquinadas Resoluções sobre a GAL, editadas no período inaugurado pela Constituição Federal de 1988, configura-se a sua condição de validade e vigência, desde a respectiva edição até – e somente até – a Emenda Constitucional nº 19/98.
4.7. Com efeito, do exame da tese formulada na manifestação acima transcrita resulta a seguinte descrição resumida: partindo do princípio da simetria, que informa uma série de regras sobre o processo legislativo no sistema federativo brasileiro (e que se traduz, neste aspecto, no entendimento consagrado na citada jurisprudência do E. STF, no sentido de que “as regras básicas do processo legislativo federal são de absorção compulsória pelos Estados-membros” – e, acrescenta-se, também pelos Municípios – “em tudo aquilo que diga respeito – como ocorre às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada – ao princípio fundamental de independência e harmonia dos poderes, como delineado na Constituição Federal”), é formulada a idéia de que, da alteração constitucional da forma legislativa (no caso, alteração da espécie legislativa Resolução para a espécie legislativa Lei em sentido estrito, o que implica as correspondentes alterações de forma e etapas do processo legislativo respectivo, como por exemplo, o acréscimo da etapa de sanção ou veto do Chefe do Poder Executivo) prevista para a disciplina do conteúdo normativo consistente na remuneração dos servidores do Legislativo, resulta, como conseqüência – repita-se: dessa alteração constitucional na forma legislativa resulta – a não-recepção e decorrente revogação das normas vigentes sobre a matéria, veiculadas pela forma prevista anteriormente a essa alteração constitucional. EM SUMA, a tese formulada na r. Análise Jurídica, neste ponto, equivale à seguinte idéia: a alteração constitucional da forma legislativa, ou seja, da forma do processo legislativo apto a disciplinar determinado assunto (conteúdo; matéria; substância) acarreta a não-recepção e conseqüente revogação dos anteriores diplomas legislativos validamente trazidos ao ordenamento jurídico, no tocante àquele conteúdo, veiculados por outra forma legislativa que não comporte relação de abrangência ou de equivalência (em termos procedimentais) com a nova forma.
V – O princípio da recepção
5.1. É bem de ver, entretanto, que tal concepção não encontra qualquer base de sustentação, seja nos princípios e regras do ordenamento jurídico positivo, seja na jurisprudência, seja na doutrina jurídica, eis que, de maneira inequívoca, encontra-se consagrado o entendimento – uníssono, como se verá, entre os autores que se detiveram no estudo do tema – no sentido de que o princípio da recepção, tendo haurido sua afirmação do princípio da continuidade da ordem jurídica, como mecanismo concretizador do princípio da segurança das relações jurídicas e sociais (este último, por sinal, um dos vetores nucleares da própria noção do Direito), opera justamente – e nisso reside a sua importância – no sentido de atender a necessidade de preservação da validade, vigência e eficácia (ou seja, de não-revogação) das normas jurídicas validamente editadas sob a égide do ordenamento constitucional anterior, à única condição de existir compatibilidade material, ou seja, compatibilidade entre o conteúdo da normatividade anterior e a nova ordem constitucional no que respeita a esse mesmo conteúdo normativo.
De tal modo que: a) existindo compatibilidade material (de conteúdo), a alteração constitucional da forma legislativa não atinge os diplomas legislativos validamente editados pela forma legislativa antes constitucionalmente prevista, diplomas esses que são, assim, recepcionados; b) a forma legislativa é regida pela regra tempus regit actum; a alteração constitucional da forma legislativa apta a disciplinar determinado assunto tem efeito imediato para o futuro, de sorte que novas normas sobre aquele assunto somente poderão ser veiculadas pela nova forma prevista (e observando-se, também então, o princípio da simetria com o centro, conforme antes referido, ou seja, a alteração da forma legislativa valendo, de imediato e para o futuro, também para os Estados-membros e para os Municípios, caso inserida essa alteração entre “as regras básicas do processo legislativo federal”, “de absorção compulsória” pelos entes federados “em tudo aquilo que diga respeito – como ocorre às que enumeram casos de iniciativa legislativa reservada – ao princípio fundamental de independência e harmonia dos poderes, como delineado na Constituição Federal”); e c) assim, é de se ver que o princípio da simetria não é incompatível com o princípio da recepção, não afasta nem prejudica a aplicabilidade do mesmo, convivendo ambos harmonicamente no ordenamento constitucional dos estados federados.
É o que sobressai evidenciado da exposição que se procura fazer a seguir.
Por oportuno, anota-se desde logo que, em se tratando do princípio da recepção, as referências a “Constituição nova” são aplicáveis também quando se cuide, como no presente caso, de novas regras constitucionais decorrentes de Emenda Constitucional.
Pedimos vênia para, desta feita, transcrever as lições dos autores que se detiveram no estudo do princípio da recepção.
5.2. Vale começar pelo ilustre constitucionalista José Afonso da Silva, e sua clássica obra intitulada “Aplicabilidade das normas constitucionais”:
“IV – Validade formal e material das normas jurídicas
14. As normas da ordem jurídica, consoante temos visto, fundamentam sua validade na constituição (no Brasil, Constituição Federal), sob dois aspectos: a) formalmente, enquanto devem ser formadas por autoridades criadas de acordo com ela, dentro da esfera de competência e conforme o procedimento por ela estabelecido; b) materialmente, enquanto o conteúdo de tais normas deve ajustar-se aos preceitos da constituição. (…)
VI – Eficácia construtiva das normas constitucionais
20. Uma constituição, quando entra em vigor, não sendo a primeira, encontra normas jurídicas vigendo validamente, por força do regime constitucional precedente.
Aparece, então, a questão da continuidade da legislação anterior, que muitas constituições, como já verificamos, resolvem expressamente, determinando ou confirmando-lhe a eficácia, quando não as contrarie explícita ou implicitamente. É o chamado princípio da continuidade da ordem jurídica precedente naquilo em que atende ao princípio da compatibilidade com a nova ordem constitucional.
(…)
22. (…) a continuidade da legislação precedente constitui um aspecto da eficácia construtiva das normas constitucionais, visto que essa legislação recebe da nova carta política outro jato de luz revivificador que a revaloriza para a ordem jurídica nascente. São as normas anteriores como que recriadas pela constituição que sucede. É esse o fenômeno que a técnica jurídico-constitucional denomina recepção da lei anterior: ‘por recepção entende-se o procedimento pelo qual um ordenamento incorpora no próprio sistema a disciplina normativa de uma dada matéria assim como foi estabelecida num outro ordenamento’ (com nota de rodapé “33. Cf. Norberto Bobbio, Teoria do ordenamento jurídico, cit., p. 169; cf. também Teoria generale Del Diritto, p. 282.”). Mas não se trata de mera recepção fria e passiva, porque, em verdade, como se disse acima, há uma recriação, uma revivificação. A lição de Kelsen é precisa sob esse aspecto: ‘Grande parte da velha ordem jurídica ‘permanece’ válida no quadro da nova ordem. Mas a frase ‘permanece válida’ não dá uma descrição adequada do fenômeno. É somente o conteúdo dessas normas que permanece o mesmo, não o fundamento de sua validade. (…) Se leis emanadas sob a velha constituição ‘continuam a ser válidas’ sob a nova, isso é possível somente porque lhes foi conferida validade, expressa ou tacitamente, pela nova constituição. O fenômeno é um caso de recepção (similar à recepção do direito romano). A nova ordem ‘recebe’, isto é, adota, normas da velha ordem; isso significa que a nova ordem jurídica atribui validade (dá vigor) a normas que têm o mesmo conteúdo de normas da velha ordem. A ‘recepção’ é um procedimento abreviado de criação do Direito. As leis que, segundo a inexata linguagem corrente, continuam a ser válidas são, de um ponto de vista jurídico, novas leis cujo significado coincide com o das velhas. (…)’ (com nota de rodapé “34. Cf. Teoria general Del Derecho y del Estado, p. 138. Cf. também: Manoel Gonçalves Ferreira Filho, Enciclopédia Saraiva de Direito, v. 63/333, e Ives Gandra Martins, ‘Competência legislativa retirada dos Estados para os Municípios pela nova ordem constitucional’, parecer, RT 645/13 e ss.”)”
5.3. Pela clareza e didatismo, cabe reproduzir, na seqüência, a explanação de Juliano Taveira Bernardes:
“Ao substituir a ordem constitucional anterior, o Poder Constituinte originário institui novo fundamento de validade do ordenamento jurídico. Porém, a legislatura ordinária não possui condições de reeditar, de plano, todo arcabouço normativo infraconstitucional precedente. Nada obstante, nem todo corpo de atos normativos anteriores é contrário aos postulados da nova Constituição. Daí, com fundamento no princípio da continuidade e em razões de segurança jurídica, aceita-se a teoria da recepção do direito positivo anterior, desde que haja compatibilidade material com o mais recente Texto Constitucional.
(…)
É irrelevante à nova ordem constitucional qual tenha sido o processo de formação dos atos normativos anteriores, importando apenas que seu conteúdo esteja em conformidade à mais recente base de validade.
Por conseguinte, na definição de Bobbio, também utilizada por Barroso (com nota de rodapé “69 – LUÍS ROBERTO BARROSO. Interpretação e aplicação da Constituição. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 66”), ‘recepção é um ato jurídico com o qual o ordenamento acolhe e torna suas as normas de outro ordenamento, onde tais normas permanecem materialmente iguais, mas não são mais as mesmas com respeito à forma” (com nota de rodapé “70 – JORGE MIRANDA prefere chamar o mesmo fenômeno de novação”).
Assentadas tais premissas, extraem-se as seguintes conclusões.
A compatibilidade necessária à recepção atém-se apenas ao aspecto material, não sendo importante a adequação formal do preceito recepcionado. Segue-se a regra do tempus regit actum. Nesse sentido, v.g., Clèmerson Clève (com nota de rodapé “72 – CLÈMERSON MERLIN CLÈVE. A fiscalização abstrata de constitucionalidade no direito brasileiro. São Paulo: RT, 1995, p. 31”), Barroso (com nota de rodapé “73 – Op. cit., p. 71 e seguintes”) e Canotilho (com nota de rodapé “74 – Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 1.109/1.110”).
Aqui, impende ressaltar que a norma recepcionada deve ser originalmente válida sob a ótica constitucional em que produzida, tanto materialmente quanto em relação à forma. Além do mais, havendo Constituições intercorrentes, a recepção pela atual ordem constitucional dependerá, ainda, da verificação da compatibilidade – apenas material – diante das Constituições que se seguiram àquela em que editada a norma.
A recepção confere novo status normativo ao texto recepcionado, com todas as suas conseqüências jurídicas. Desse modo, se a nova Constituição prevê a edição de lei complementar para a disciplina do Sistema Tributário Nacional (art. 146), a recepção do atual Código Tributário Nacional, originariamente veiculado por meio de lei ordinária (Lei 5.172, de 25/10/96) (sic; data correta: 25/10/66), faz com que o diploma passe a vigorar com a roupagem legislativa de lei complementar, não mais podendo ser modificado por leis ordinárias, a despeito de seu modelo normativo inicial (com nota de rodapé “76 – Esse fenômeno de alteração do status normativo inicial da norma recepcionada, porém, é balizado pelas exigências formais da nova Constituição. Daí, se um diploma pré-constitucional veicula tanto temas cuja regulação exige o novo Texto Constitucional a edição de lei complementar quanto também disciplina outros assuntos para os quais o novo modelo constitucional não faz exigências legislativas especiais, somente aquela primeira parte não pode ser modificada por meio de leis ordinárias”). O mesmo se diga em relação às regras sobre a organização e competência da Justiça Eleitoral expostas no atual Código Eleitoral (Lei 4.737, de 15/07/65) em face do artigo 121 da CF/88. Mas pode também suceder o inverso. Servem de exemplo as Leis Complementares n. 07, de 07/09/70, e 08, de 03/12/70, recepcionadas pela atual Constituição com o status de leis ordinárias (artigo 239, caput, da CF/88).”
5.4. Vejamos também a lição ministrada pelo saudoso Celso Ribeiro Bastos:
“5.1.2. Direito Constitucional Novo e Direito Ordinário Anterior
Uma Constituição nova instaura um novo ordenamento jurídico. Observa-se, porém, que a legislação ordinária comum continua a ser aplicada, como se nenhuma transformação houvesse, com exceção das leis contrárias à nova Constituição. Costuma-se dizer que as leis anteriores continuam válidas ou em vigor. Muitas vezes isto é previsto na Constituição nova, mas, ainda que o texto seja omisso, ninguém contesta o princípio. (…) Este é o fenômeno da recepção, similar à recepção do direito romano na Europa. Trata-se de um processo abreviado de criação de normas jurídicas, pelo qual a nova Constituição adota as leis já existentes, com ela compatíveis, dando-lhes validade, e assim evita o trabalho quase impossível de elaborar uma nova legislação de um dia para o outro. Portanto, a nova lei não é idêntica à lei anterior; ambas têm o mesmo conteúdo, mas a nova lei tem seu fundamento na nova Constituição; a razão de sua validade é, então, diferente.
(…) a legislação ordinária anterior, a qual não cessa de viger, embora o novo fundamento de validade venha informado pelos princípios materiais da nova Constituição. (…)
(…)
(…) o fato de uma norma ter sido aprovada por um ato inferior à lei, mas que sob o regime antigo tinha força de lei, não é óbice para que continue em vigor debaixo da Constituição nova que exija lei formal para tanto.
No nosso direito até hoje temos em vigor atos normativos com força de lei, embora tivessem sido aprovados à época (período imediatamente anterior à constitucionalização de 1934) por meros decretos.”
5.5. No mesmo sentido é também o ensinamento da professora Maria Helena Diniz, a seguir:
“b.3. Efeitos, no plano temporal, da incidência da norma constitucional sobre outras normas
(…)
b.3.1. Revogação e recepção
As leis e atos normativos anteriores à nova Constituição Federal teriam, com sua promulgação, validade? Perderiam, ou não, sua eficácia? (…)
Desde a promulgação das novas normas constitucionais, devem ser conformes a elas toda a legislação anterior e futura, todos os atos e negócios jurídicos, todas as sentenças, ante o princípio da hierarquia normativa e da supremacia da Constituição, do qual decorre a obrigatoriedade imediata de seus preceitos.
Logo, está ínsita no sistema a regra de que a nova Constituição Federal não repudia as normas anteriores com ela compatíveis. A ordem normativa anterior à nova Carta só prevalecerá se for por ela, expressa ou tacitamente, admitida, verificando-se a segunda hipótese sempre que as normas antigas forem conformes com as novas disposições constitucionais.
As normas e atos anteriores não conflitantes com a nova Constituição subsistem, não precisando ser renovados.
O fenômeno da recepção da ordem normativa vigente sob a égide da antiga Carta, e compatível com a nova, dando-lhe nova roupagem ou fundamento de validade, tem por finalidade precípua dar continuidade às relações sociais sem necessidade de novas leis ordinárias, o que seria, além de difícil, custoso, quase que impossível. José Afonso da Silva denomina eficácia construtiva a essa incidência das novas normas constitucionais sobre as da ordenação anterior compatíveis com elas, que, em nome do princípio da continuidade da ordem jurídica, são como que recriadas pela nova Carta Magna.
As normas da nova Constituição, que entra em vigor, têm a propriedade de recepcionar, de modo automático, as normas anteriores infraconstitucionais, materialmente, compatíveis com elas, confirmando sua vigência, eficácia e validade.”
5.6. Assim também ensina o professor Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
“D) A NORMA CONSTITUCIONAL NO TEMPO
5. A questão da incidência da lei constitucional no tempo suscita debates complexos que as dificuldades reais do tema não provocam e sim a incompreensão de certos ponto de direito intertemporal.
É indisputado pela doutrina que a Constituição é a base da ordem jurídica. Ela inicia tal ordem, de sorte que o ordenamento tem de ser logicamente visto como editado a partir dela, como um desdobramento de seus preceitos, estabelecido pela forma, ou pelas formas, que ela houver instituído. É a conhecida lição de Kelsen (Teoria pura do direito, 2. ed., trad. port., Coimbra, Armênio Amado Ed., 1962, v. 2, p. 7).
Inferência disso é que, sendo a Constituição a base da ordem jurídica, a perda de eficácia de uma Constituição acarretaria a de toda a ordem jurídica a ela anterior. Toda a ordem jurídica, então, teria de ser refeita com base na nova Constituição, ainda que, salvo a hipótese de revolução profunda, política, econômica e social, ela praticamente copiaria as normas anteriores.
Entretanto, já Hobbes apontava que ‘o legislador não é apenas aquele por cuja autoridade as leis foram por primeiro feitas, mas também aqueles por cuja autoridade essas leis posteriormente continuam como leis’ (Leviatã, Parte 2, Cap. 26).
A partir desta idéia, desenvolveu-se a doutrina da recepção que evita o refazimento, do zero, da ordem jurídica, sustentando o ‘recebimento’ do direito anterior pela nova Constituição, observadas certas condições (v. meu O poder constituinte, 2. ed., São Paulo, Saraiva, 1985, n. 81 e s.).
(…)
A recepção tem um limite, porém. O da compatibilidade. Somente ocorre a recepção em relação às normas do ordenamento anterior compatíveis com a nova Constituição. As normas com esta incompatíveis perdem eficácia juntamente com a velha Constituição.
Esta compatibilidade é de conteúdo, não de forma. A forma é regida pela regra tempus regit actum, de modo que é irrelevante para a recepção. O que importa é o conteúdo: a norma deve ser compatível com as disposições de fundo da nova Constituição para que possa ser por esta recebida e mantida em vigor.”
5.7. O mesmo ensinamento é ministrado pelo professor Ives Gandra da Silva Martins, em parecer que tratou da aplicação do princípio da recepção em caso que envolvia matéria tributária. Cuidava-se, então, de examinar a recepção de normas legais acerca de concessão de benefício tributário em face do disposto no § 6º do art. 150 da CF/88, tanto em sua redação original quanto na redação dada EC 3/93, que dispunham que o benefício referido “só poderá” ser concedido mediante lei que atenda aos requisitos indicados nos mencionados novos dispositivos constitucionais. Transcrevemos desse parecer os trechos a seguir:
“(…) A própria utilização do verbo no futuro do indicativo não oferta dúvidas de que prevalecerá a disposição a partir daquele momento (…).
(…) Em outras palavras, as novas exigências valem para o futuro, mas não atingem o passado, em face de não ser requisito, à época, a veiculação por Lei Complementar.
(…) Em outras palavras, a ordem anterior não conflitante no conteúdo com as disposições da ordem atual, foi recepcionada e continua recepcionada, apenas podendo ser alterada por lei ‘específica’ e ‘exclusiva’, no futuro.
Enquanto não houver mudança, a forma anterior foi recepcionada e o comando normativo continua a gerar todos os efeitos jurídicos que gerava no passado.
Admitir raciocínio contrário é, em verdade, inviabilizar todas as leis anteriores cujo perfil formal se diferencie do perfil a ser exigido para a nova legislação, o que levaria a concluir não ter sido o CTN recepcionado, por ser lei ordinária e não Lei Complementar.
(…) princípio da recepção, que regula o acolhimento do direito material e exige, para as mudanças futuras, a adoção da veiculação formal imposta pela nova Lei Maior.”
5.8. Importa salientar também a posição do egrégio Supremo Tribunal Federal, ilustrada em voto proferido pelo eminente Ministro Sepúlveda Pertence no julgamento do Recurso Extraordinário nº 214.206, conforme o trecho que se transcreve:
“(…) a matéria se reduz à aplicação de um dogma fundamental da teoria da inconstitucionalidade: o de não existir inconstitucionalidade formal superveniente. Rege aí o tempus regit actum, salvo eventual força retroativa da Constituição superveniente, a qual, no entanto, não se presume”.
VI – As mencionadas Resoluções sobre a GAL e o princípio da recepção
6.1. A Professora Odete Medauar, também ela ilustre Professora Titular de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, teve oportunidade de se pronunciar especificamente sobre a questão em pauta neste procedimento (qual seja, se as Resoluções n°s. 8/90 e 6/93 foram recepcionadas ou não pela EC n° 19/98), ao ser solicitada, pela Associação dos Servidores da Câmara Municipal de São Paulo, a examinar diversos aspectos dos já reportados Relatório da FGV e Análise Jurídica da Profª Maria Sylvia Zanella Di Pietro.
No Parecer, datado de 08/07/2002, que lavrou em resposta a referida consulta, assim manifestou-se a Professora Odete Medauar, no tocante à questão ora em exame:
“7.1.1. A Constituição Federal de 1988 não veda a atribuição de gratificações, adicionais, abonos, verbas de representação a servidores públicos em geral. Atente-se que o § 1° do art. 39 menciona a fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes remuneratórios. A propósito, bem nota José Afonso da Silva:
‘Os acréscimos pecuniários ao padrão de vencimento dos servidores públicos continuam admitidos pela Constituição, em relação a vencimentos e remuneração; não aos subsídios, que não os admitem’ (Curso de Direito Constitucional Positivo, 2002, p. 666)
A exceção ocorre para aqueles que percebem subsídio fixado em parcela única, nos termos do art. 39, § 4°, ou seja, os membros de Poder, o detentor de mandato eletivo, os Ministros de Estado, os Secretários Estaduais e Municipais, e alguns outros cargos remunerados por subsídio (p. ex: Ministro do Tribunal de Contas da União, Ministério Público, da Advocacia – Geral da União).
Na Câmara Municipal percebem subsídio somente os Vereadores. Para todos os servidores da Câmara, salvo os Vereadores, é constitucional o recebimento de gratificações, adicionais, verba de representação ou outra espécie remuneratória.
7.1.2. A Constituição Federal de 1988 não vedou a incorporação ou permanência de acréscimos pecuniários, tais como gratificações, adicionais, verba de representação. Nem a Emenda 19/98 impede a incorporação ou permanência dessas vantagens.
7.1.3. A citada Análise Jurídica, sob a rubrica ‘vantagens pecuniárias indevidas’, item 3.4., arrola a gratificação de apoio ao legislativo- GAL, (…). A fls 21 (…) afirma que a GAL e (…) são indevidas porque as Resoluções que as criaram não foram recepcionadas pela EC 19/98, devendo ser revistos todos os atos de concessão, a partir da publicação daquela Emenda (05.6.1998).
No entanto, tal conclusão mostra-se eivada de equívocos, como se verá a seguir, (…).”
Na seqüência, após deixar assinalado que a GAL foi instituída por Resolução de 1990, prossegue a Professora Odete Medauar, referindo-se inicialmente a Resoluções instituidoras de vantagens pecuniárias componentes da remuneração dos servidores da Câmara Municipal:
“7.1.3.1. (…)
Na época em que foram editadas vigorava a redação original dos arts. 51, IV e 52, XIII, da Constituição de 1988, que atribuíam ao Legislativo dispor sobre sua organização, funcionamento, fixação da remuneração dos cargos. Não havia a exigência de lei para a edição de preceitos nestas matérias.
Por isso, tais gratificações se instituíram sem nenhum vício de constitucionalidade, nem quanto à forma de expressão, nem quanto ao conteúdo.
7.1.3.2. Com a EC 19, de 04.6.1998, a redação dos citados dispositivos e do inciso X do art. 37 foi alterada, no sentido de depender de lei de iniciativa do Legislativo a disciplina relativa à fixação da remuneração dos respectivos cargos, empregos e funções. Mas, a mudança da forma de expressão da matéria não significa a revogação dos textos anteriores, editados por outros meios. Se assim fosse, quase nenhuma norma prevaleceria na história legal de um País ante a evolução das formas de expressão do Direito que se dá com frequência.
Na história jurídica do Brasil é muito comum que uma forma de expressão existente numa época se altere em época posterior. Assim, por exemplo, o Decreto-lei 25/37, relativo ao tombamento; hoje a matéria seria disciplinada por lei; mas, não se diz que o DL 25/37 é hoje inconstitucional e não mais prevalece, porque sua forma de expressão não foi recepcionada pela Constituição de 1988. O mesmo ocorre com o Decreto-lei 3.365/41 sobre desapropriação.
Pode-se exemplificar também com a criação da USP, em 1934, por decreto; hoje uma autarquia deve ser criada por lei específica; mas a USP ‘vale’ como autarquia, permanece como ente constitucional e legalmente criado. Pareceria estranho dizer que a USP não foi recepcionada pela Constituição de 1988, devendo ser considerada extinta a partir daí porque foi criada por um decreto; que o DL 25/37 e o DL 3365/41 não foram recepcionados pela Constituição de 1988 e por isso não mais existem no ordenamento jurídico.
7.1.3.3. Na verdade, a figura da recepção se coloca quanto ao conteúdo da norma, não no atinente à forma de expressão. Confira-se em Kelsen, o moderno divulgador da figura da recepção, na obra publicada pela Harvard University Press, traduzida para o italiano como Teoria Generale Del Diritto e dello Stato, Etas Libri, 1984, p. 119:
‘Se leis emanadas sob a velha constituição ‘continuam a ser válidas’ sob a nova, isso é possível somente porque lhe foi conferida validade, expressa ou tacitamente pela nova constituição. O fenômeno é um caso de recepção. … O novo ordenamento ‘recebe’, isto é, adota, as normas do velho ordenamento; isto significa que o novo ordenamento atribui validade (dá vigor) a normas do velho ordenamento que têm o mesmo conteúdo. A ‘recepção’ é um procedimento abreviado de criação do direito. As leis que, segundo a inexata linguagem corrente, continuam a ser válidas, são, do ponto de vista jurídico, novas leis cujo significado coincide com o das velhas’. (grifos nossos)
Na origem, as formas de expressão da GAL (…) eram constitucionais e válidas. Desse modo não há que se dizer que não foram recepcionadas pela EC/98 (sic), porque a figura da recepção se coloca em termos de conteúdo, não no aspecto da forma de expressão. As Resoluções (…) continuaram constitucionais e válidas após 05.06.1998. Portanto não há que se cogitar de revisão das concessões a partir da EC 19/98. Evidente que se houver intuito de alterá-las ou aboli-las, (…) a forma de expressão será a lei.
7.2. A gratificação de apoio legislativo – GAL
A GAL foi instituída pela Resolução 8, de 19.10.1990, havendo alterações posteriores. O art. 3° da mesma Resolução vedava a incorporação. No entanto, a Resolução 6/1993, no art. 1°, parágrafo único, determinou a aplicação das normas da Lei 10.442, de 04.3.1988, para a permanência da GAL. Esta Lei prevê a permanência, após percepção mínima de cinco anos, de gratificação a que se refere o art. 100, I, do Estatuto Municipal. Portanto, a GAL passou a ser permanente com o mínimo de 5 (cinco) anos de recebimento, considerando-se, na contagem, gratificações concedidas sob diferentes fundamentos, como previu a citada Resolução 6/1993.
E o § 2° da Resolução 8/1990 [“sic”; trata-se do § 2° do art. 3°] determina que sobre a GAL não incida quaisquer vantagens de ordem pecuniária.
(…)
Vê-se, portanto, que inexiste inconstitucionalidade alguma na criação, permanência (…) da GAL.” (Parecer cit., pp. 15-20; grifos e negritos conforme original).
6.2. Neste passo, cumpre voltar à questão jurídica de fundo para que fique explicitada a conclusão ora alcançada a seu respeito. Como visto, dita questão traduz-se em saber se, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, as Resoluções da CMSP nº 8/90 (no que criou a GAL) e nº 06/93 (no que previu a permanência da GAL) foram ou não recepcionadas pela Emenda Constitucional nº 19/98.
6.2.1. Por tudo o que antes exposto, resta cristalinamente evidenciada a conclusão no sentido de que, quanto ao indigitado conteúdo, a Resolução nº 8/90 e a Resolução nº 6/93 foram recepcionadas pela Emenda Constitucional nº 19/98, eis que, validamente editados aqueles atos legislativos – isto é, editados com observância dos princípios e normas constitucionais vigentes quando de sua edição, seja quanto à forma (competência, iniciativa e procedimento), seja em relação ao seu conteúdo –, inexistiu incompatibilidade material entre aqueles atos legislativos (o primeiro, ao criar a GAL, e o segundo, ao disciplinar as condições de permanência da mesma) e a EC 19/98, ou seja, inexistiu incompatibilidade entre o referido conteúdo normativo daquelas Resoluções e as normas da EC adstritas a esse mesmo conteúdo normativo.
6.2.2. Assim, tendo sido recepcionadas, as referidas Resoluções continuaram tendo vigência até serem revogadas pela Lei Municipal nº 13.637/2003 (publicada no DOM/SP de 10/09/2003; segundo sua ementa, dispõe sobre a reorganização administrativa da CMSP e de seu Quadro de Pessoal, procede às adaptações necessárias às normas das Emendas Constitucionais nº 19/98 e 20/98 e dá outras providências). Nesta lei, a par de ser instituído novo regime para a remuneração dos servidores da CMSP, consta a expressa revogação da Resolução nº 08/90 e alterações posteriores (aí revogados também, portanto, os respectivos dispositivos da Resolução n° 6/93), nestes termos: “Art. 48 – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial a (…) Resolução nº 8, de 19 de outubro de 1990 e alterações posteriores, (…).”
VII – A recepção e o efeito da decisão do TCM
7.1. Dito isto, importa perquirir como possa prosperar a inequívoca conclusão ora alcançada, no sentido da recepção das questionadas Resoluções da GAL pela EC nº 19/98, em face do reconhecido efeito vinculante da decisão tomada no r. acórdão do E. TCM.
Ora, no ponto em questão, referente à GAL, constata-se agora, neste passo do presente procedimento contraditório, que o r. acórdão do E. TCM baseou-se em fundamento que, conforme cremos ter farta e induvidosamente demonstrado, mostra-se inteiramente desprovido de respaldo jurídico. Ou seja, cumpre dizer: o r. acórdão do E. TCM, quanto ao aspecto do mérito da questão em exame, carece de legalidade, padece de ilegalidade, pois lastreado em fundamento jurídico insubsistente.
Assim sendo, faz-se mister cogitar acerca de medidas tendentes à reforma do r. Acórdão no ponto em exame, de modo a elidir o referido efeito vinculante do r. decisório nos termos em que se encontra posto.
Por certo, essa força vinculante das decisões do TCM, nas matérias de sua competência, é posta pelo ordenamento jurídico como meio, como instrumento visando a efetividade de suas atribuições de controle – no presente caso, trata-se do controle de legalidade –, exercidas essas atribuições dentro dos marcos do ordenamento legal. Assim, o efeito vinculante é posto pelo ordenamento jurídico como instrumento para operar a serviço da legalidade, e não com o sentido, condão ou efeito de dar respaldo a ilegalidade, por isso não devendo ser entendido nem operado em contraposição com a legalidade material, mas sim em harmonia com esta.
Bem por isso, na hipótese de ilegalidade – como a que ora se verifica –, o ordenamento jurídico prevê a possibilidade de reforma da decisão, seja através do recurso cabível junto à própria Corte de Contas, seja pela via da desconstituição judicial da decisão (possibilidade essa, aliás, apontada à fl. 167).
7.2. Por outro prisma, importa também levar em consideração os termos em que vazada, no ponto, a decisão da Corte de Contas, para ter-se idéia precisa da real dimensão do efeito a que vinculada a Administração.
Com efeito, conforme reproduzido no início deste trabalho (item 3.3, retro), a decisão do E. TCM consistiu em conhecer das auditorias realizadas, bem como em determinar a remessa de cópias dos relatórios correspondentes, com recomendação à E. Mesa Diretora para que promova as medidas saneadoras sugeridas pela equipe de auditoria, a saber (no ponto em foco): proceder ao levantamento dos servidores que se encontrem na situação apontada, para o fim de anular os atos concessivos mediante o procedimento administrativo próprio.
É bem de ver que a E. Mesa não deixou de dar cumprimento ao que lhe competia em face do grau de vinculação presente na r. decisão do E. TCM: determinou o levantamento de todos os servidores que se encontram na situação apontada, bem como a instauração do procedimento administrativo próprio. Este procedimento é precisamente o devido processo legal consubstanciado nos presentes autos, em que oportunizados – a teor do art. 5º, inciso LV da Carta Magna – o contraditório e a ampla defesa aos funcionários que possam vir a ser afetados pela decisão final do mesmo.
Ora bem, encontrando-se instaurado, nestes autos, o procedimento administrativo próprio, que outro não é senão o devido processo legal em que franqueado o exercício do contraditório e da ampla defesa, então decorre que a recomendação do E. TCM não vai ao ponto de predeterminar ou prefixar, com força vinculante nesta parte, o teor da decisão final do referido devido processo legal. Tal prefixação configuraria negação lógica e conceitual do devido processo legal, e, portanto, ofensa ao art. 5º, inciso LV da Constituição Brasileira.
Desse modo, a força vinculante da decisão do E. TCM não comporta dimensão a ponto de abarcar a expressão “para o fim de anular os atos concessivos”, que, assim, há de ser compreendida com tendo a função de indicar o objeto a ser examinado no processo contraditório cuja instauração estava a ser recomendada. Vinculante é, assim, a recomendação de instauração do procedimento – recomendação a que foi dado o devido cumprimento –, e não, como visto, a invalidação dos atos concessivos em tela.
Assim, a invalidação dos atos concessivos da vantagem pecuniária em tela ou do reconhecimento de sua permanência, objetos do presente procedimento, somente poderia então resultar de deliberação fundamentada da E. Mesa, ao final do mesmo, acaso restar convencida do cabimento da medida, em face dos dados e elementos de convicção carreados, sob o norte das normas legais.
Todavia, à luz de tudo o que antes exposto, a presente manifestação é no sentido de que a justificativa preconizada para tal medida carece de fundamento jurídico, mostrando-se desguarnecida da necessária legalidade.
De maneira que, também por este aspecto, mostra-se necessário examinar a possibilidade de reforma da r. decisão do E. TCM, no ponto em debate.
VIII – O recurso de revisão
Neste sentido, a Lei Municipal nº 9.167, de 03 de dezembro de 1980 (que “dispõe sobre a reorganização, competência, jurisdição e funcionamento do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, e dá outras providências”) dispõe em seu artigo 45 que caberá recurso ao Tribunal Pleno: “V – Quando a decisão ou acórdão for proferido contra expressa disposição de lei”; segundo o parágrafo único do artigo 46, será de 5 (cinco) anos o prazo de recurso na hipótese, entre outras, do inciso V do artigo 45; sendo que, nos termos do art. 47, “o recurso será recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo”.
De sua vez, o Regimento Interno do E. TCM/SP (RI-TCM), aprovado pela Resolução nº 03, de 03 de julho de 2002, dispõe sobre os recursos cabíveis das decisões e acórdãos em seu Título IV, Capítulo XII, arts. 137 a 152, tratando especificamente do recurso de revisão nos arts. 148 e 149, nos termos seguintes:
“Art. 148 – As decisões terminativas e os acórdãos transitados em julgado poderão ser revistos pelo Tribunal Pleno, quando:
(…)
III – violarem disposição literal de lei.
§ 1º – A revisão será requerida ao Presidente do Tribunal dentro do prazo de 05 (cinco) anos, contados do trânsito em julgado da decisão ou acórdão.
§ 2º – Constitui formalidade essencial da revisão, requerida com base no inciso III, a indicação expressa do texto legal violado, com sua transcrição integral.
Art. 149 – O Tribunal poderá proceder à revisão de julgado, por iniciativa de qualquer de seus Conselheiros, nos casos previstos no artigo anterior.”
De observar-se, a propósito do recurso cabível por parte da Edilidade, já ter para esta decorrido o prazo para recurso ordinário (prazo de 15 dias contados da intimação do acórdão), conforme previsto no art. 147 do RI-TCM.
Observa-se que não há nos autos informação acerca de ter sido ou não apresentado recurso do acórdão do E. TCM por outros legitimados. De qualquer sorte, restaria à Edilidade o recurso de revisão, a partir do momento em que se tenha verificado ou se venha a verificar o trânsito em julgado do acórdão. De ser considerado ainda que, caso não tenha havido interposição de recurso abrangente do específico ponto do acórdão, em questão nos presentes autos, contra esta parte poderia então ser admitido desde logo o cabimento do recurso de revisão.
IX – As normas legais violadas pelo tópico da decisão do TCM
Conforme visto, concluiu-se que, no ponto em tela, o acórdão do E. TCM padece de ilegalidade ao fundamentar-se em entendimento desguarnecido de respaldo jurídico (qual seja, entendimento no sentido da não-recepção das Resoluções da GAL pela EC 19/98). Por isso, cabível o recurso de revisão, com base no art. 45, inciso V, combinado com art. 46, parágrafo único, da Lei Municipal n° 9.167/80, bem como no art. 148, inciso III e § 1°, e bem assim, em sendo o caso, no art. 149 do Regimento Interno do E. TCM/SP (RI-TCM, aprovado pela Resolução TCM n° 03/2002). Trata-se de recurso a ser recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo, nos termos do art. 47 da Lei 9.167/80. A seu turno, o § 2º do art. 148 do Regimento Interno da E. Corte de Contas exige a indicação expressa do texto legal violado, com sua transcrição integral.
Faz-se necessário, portanto, e por ora mostra-se suficiente, a indicação das disposições constitucionais e legais violadas, e a demonstração de seu desatendimento.
9.1. Cabe apontar os dispositivos constitucionais e legais que constituem um arcabouço jurídico positivo do princípio da recepção, considerados também os elementos presentes na situação em foco.
9.1.1. Primeiramente, o inciso XXXVI do art. 5º da Constituição Federal, no que se refere ao ato jurídico perfeito: “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”.
Com efeito, na obra intitulada “A Inconstitucionalidade das Leis – Vício e Sanção”, Elival da Silva Ramos ensina que a lei é “ato jurídico veiculador de normas”, da categoria de “negócio jurídico de direito público” , indicando que também Del Vecchio inclui entre os negócios jurídicos os atos legislativos, sem deixar de assinalar a presença nesses atos jurídicos de certas características especiais .
Certo, então, que também a lei válida (aí incluída também a Resolução dos parlamentos, como aquelas aqui em tela), enquanto ato jurídico perfeito – por sinal, de enorme importância na vida social – não fica ao desamparo da garantia insculpida na mencionada cláusula constitucional; apenas, como bem observa o citado autor, guardando neste aspecto características especiais (podendo, por exemplo, ser revogada por lei posterior que, v.g., altere o seu conteúdo normativo; a garantia constitucional significa porém que, enquanto não for regularmente revogada, a lei válida, enquanto ato jurídico perfeito, permanece em vigência, ou seja, com aptidão para produzir efeitos).
9.1.2. No plano constitucional, foi afrontado também o inciso X do art. 37 da CF, na redação dada pela EC 19/98, em que (à semelhança da observação retro de Ives Gandra da Silva Martins), a conjugação do verbo no futuro (“somente poderão”), determinando que “a remuneração dos servidores públicos e o subsídio (…) somente poderão ser fixados ou alterados por lei específica, observada a iniciativa privativa em cada caso, (…)”, não deixa dúvidas de que essa alteração da forma legislativa somente valerá para o futuro, sem invalidação dos anteriores diplomas legislativos válidos sobre a matéria – em conformidade, aliás, ao tranqüilo entendimento acerca do princípio da recepção.
9.1.2.1. Também não foi dada a necessária observância ao § 1° do art. 39 da Constituição Federal (na redação dada pelo art. 5° da Emenda Constitucional n° 19/98), no que revela de compatibilidade material com o conteúdo das indigitadas Resoluções da GAL, ao expressamente contemplar a possibilidade de que o sistema remuneratório dos servidores públicos inclua componentes outros, distintos dos padrões de vencimento, verbis: “§ 1° A fixação dos padrões de vencimento e dos demais componentes do sistema remuneratório observará: (…)”. Essa compatibilidade material determina a recepção da GAL pela EC 19/98; pelo que, o entendimento pela não-recepção viola o citado § 1° do art. 39, na redação dada pela Emenda 19/98.
9.1.3. Também se mostram desatendidos, da Emenda Constitucional nº 19/98: o seu artigo 3° (ao dizer que, entre outros, o inciso X do art. 37 da CF passa a vigorar com a redação indicada); o art. 5° (ao dizer que o art. 39 da CF, aí incluso o § 1° deste dispositivo, “passa a vigorar” com a redação indicada); o artigo 9º (ao dizer que “o inciso IV do art. 51 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação” – sem negrito no original) e o seu art. 10 (ao igualmente dizer que “o inciso XIII do art. 52 da Constituição Federal passa a vigorar com a seguinte redação” – sem negrito no original), também aí indicando que a alteração na forma legislativa deverá ser observada de então em diante, sem prejudicar os anteriores diplomas legislativos válidos sobre a matéria, em conformidade ao princípio da recepção.
9.1.4. Também foi maltratado o art. 6º, caput da Lei de Introdução ao Código Civil (Decreto-lei nº 4.657, de 04/09/1942), que dispõe que “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, (…)”.
Com efeito, ensina Manoel Gonçalves Ferreira Filho:
“É princípio geral de direito e base do direito intertemporal o efeito imediato da lei. Isto significa que ela, uma vez perfeita e acabada (…), está apta a produzir efeitos, ou seja, é eficaz.
Não foge a esta regra a norma constitucional, seja originária, seja derivada.
(…)
Clara inferência do princípio do efeito imediato é a contrario sensu o principio geral de irretroatividade. É este igualmente visto como um princípio geral de direito.”
9.1.5. Também quedou desatendido, pelo entendimento de não-recepção das questionadas Resoluções sobre a GAL, outro importante conjunto de normas de direito intertemporal, agrupadas que foram no artigo 2º, caput e §§ 1º e 2º, da Lei de Introdução ao Código Civil, verbis:
“Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
(…)”
Conforme preleciona, entre outros, Maria Helena Diniz: “A eficácia ab-rogativa das disposições constitucionais, que acarreta a perda dos efeitos da legislação e atos normativos anteriores, é questão de direito intertemporal: aquelas normas preexistentes tinham validade em face da Constituição anterior; a promulgação de uma outra Carta é que as torna incompatíveis com os novos preceitos. É, portanto, problema de sucessão no tempo.”
Ora, com efeito: as mencionadas Resoluções sobre a GAL não se destinaram a vigência temporária, portanto, haveriam de ter vigor até que outros diplomas legislativos apropriados as modificassem ou revogassem; a EC 19/98 não declarou expressamente a revogação dos diplomas legislativos infraconstitucionais, sem forma de lei, que anteriormente tratavam validamente sobre a matéria remuneração dos servidores públicos das Casas Legislativas; tampouco, a EC 19 é incompatível com aquelas Resoluções (como já visto, essa aferição de compatibilidade se dá pelo conteúdo, não pela forma de expressão legislativa); ainda, a EC 19 não regulou a matéria de que tratavam as Resoluções, apenas dispôs que os novos diplomas legislativos sobre essa matéria deveriam, dali em diante, assumir a forma de lei de iniciativa privativa das mesmas Casas Legislativas.
Assim, longe de revogar, a EC 19/98 recepcionou as referidas Resoluções.
9.1.6. Também de notar que, tendo as Resoluções da GAL sido recepcionadas pela EC 19, portanto continuando válidas, vigentes e eficazes após o advento da mesma (cf. item 6.2, retro), a recomendação visando a invalidação dos atos concessivos da vantagem ou de sua permanência, praticados após a EC 19, está em contradição aos dispositivos legais dessas Resoluções (arts. 1° a 4° da Resolução n° 08/90, e art. 1°, parágrafo único da Resolução n° 06/93) que determinaram ou autorizaram esses atos concessivos, bem como ao art. 37, inciso XV da Constituição Federal (irredutibilidade de vencimentos).
9.1.7. Enfim, e não menos importante, resulta também desatendido – pela premissa de mérito (não-recepção da GAL pela EC 19/98) ínsita à recomendação contida no r. acórdão do E. TCM, quanto à debatida questão da GAL, e por eventual implementação dessa recomendação em conformidade a tal premissa – o princípio constitucional da legalidade administrativa, insculpido no art. 37, caput, da Carta Magna.
X
Um último ponto reclama consideração. À fl. 162, e fazendo referência aos documentos reproduzidos às fl. 168 a 180, ilustre Sra. Assessora Legislativa da Presidência – entendendo configurada situação similar no presente caso, e daí inferindo que idêntico encaminhamento haveria de ser adotado – assinala que os integrantes deste órgão técnico jurídico têm exercitado (legitimamente, conforme reconhecido pela mesma, à fl. 162) a recusa do patrocínio da defesa judicial desta Edilidade, em casos nos quais (como aquele referenciado nas cópias de fls. 168/180) a pretensão ajuizada seja “concernente a lei ou direito que também lhe seja aplicável, ou contrarie expressa orientação sua, manifestada anteriormente”, nos termos do art. 4°, parágrafo único do Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil.
Com todo o respeito, quero crer que inexiste a sugerida similaridade de situação com os presentes autos.
Com efeito, conforme espelhado às fls. 168/180, a declinação trazida à colação referiu-se ao patrocínio da defesa da Câmara em ação judicial contra esta ajuizada, cujo objeto se referia a direito também aplicável a advogados públicos da Casa, entre os quais o ora subscritor (alguns dos quais, inclusive, tendo formulado pedidos administrativos semelhantes), ou cuja causa de pedir estava em contradição a expressa orientação exarada pelo órgão de assessoria jurídica (cf. fls. 176 a 180).
Certo que, quanto ao pedido de incorporação de vantagens referido na última cota de fls. 179, sobre não apresentar identidade de fundamento jurídico com o objeto dos presentes autos (objeto este, indicado nos tópicos I, 2.1, 2.2, 2.3, e 3.3.1, retro), também não inclui a vantagem pecuniária ora em tela entre aquelas do cargo cuja incorporação é lá pleiteada e debatida.
Ademais, na situação ora em curso nos presentes autos, não se trata do patrocínio de defesa judicial da Câmara, mas de atividade de consultoria e assessoria jurídicas, conforme previstas no inciso II do art. 1° da Lei n° 8.906, de 04/07/1994 (Estatuto da Advocacia).
Na atividade de consultoria e assessoria jurídica, o advogado público não exerce patrocínio de pretensão; ele atua no esclarecimento da Administração Pública e seus agentes quanto aos aspectos jurídicos de seus atos, com vistas a que o Poder Público se paute em conformidade às normas legais. No dizer de Eduardo C. B. Bittar, referindo-se aos distintos papéis e atividades do advogado: “Em atividade judicial, (o advogado) representa, funciona como intermediário de uma pretensão diante das instituições às quais se dirige ou perante as quais postula; em atividade extrajudicial, aconselha e assessora, previne.” Em ambas essas modalidades de atuação, deve o advogado “zelar pela sua liberdade e independência”, a teor do que preceitua o caput do referido artigo 4° do Código de Ética e Disciplina do Advogado.
De maneira que, s.m.j., da faculdade prevista no dispositivo, assegurada em prol da inviolabilidade, liberdade e independência na atuação do advogado, não parece decorrer impedimento nem dever ético de ser declinada recusa à manifestação demandada no presente caso, no desempenho da função de assessoria e consultoria jurídica, dentro das balizas éticas que norteiam e asseguram o desimpedido exercício do peculiar múnus público inerente à advocacia.
Por esse modo, sem desrespeito nem renúncia aos imperativos da isenção técnica, liberdade e independência com que os integrantes deste órgão técnico procuram pautar sua atuação, permiti-me elaborar esta despretensiosa manifestação, em atendimento à honrosa designação de fl. 196-verso.
Entrementes, a par dos esclarecimentos prestados no intuito de que não sobrepaire qualquer dúvida a respeito, de outro lado parece oportuno observar que a suscitação do tema abre ensejo a que fique obviada a possibilidade de a Administração socorrer-se também de outros subsídios técnicos, se assim entender conveniente em seu elevado critério, que possam vir a complementar aqueles ora trazidos, no exclusivo intuito de contribuir ao adequado esclarecimento quanto a importantes aspectos jurídicos suscitados em relação à questão em exame, com vistas ao seu equacionamento em conformidade com os princípios constitucionais e legais norteadores da Administração Pública.
XI – Síntese conclusiva
Cumpre, finalmente, traçar um quadro resumido das conclusões alcançadas na presente manifestação.
11.1. O objeto destes autos consiste em dar o devido encaminhamento à r. decisão da E. Mesa (publicada no D.O.M. de 18/12/2003, p. 63), tomada com base em recomendação contida no acórdão do E. TCM relativo a auditoria realizada pelo mesmo na folha de pagamento da Edilidade (acórdão publicado no D.O.M. de 08/08/2003, p. 71/72, item n° 2; auditoria consubstanciada no Processo TC n° 72.002.911.02-25), no sentido de, mediante o devido processo legal em que oportunizados o contraditório e a ampla defesa, serem tomadas as medidas legais cabíveis quanto à cassação, por invalidação, dos efeitos de permanência ou concessão da GAL, obtidas a partir de 05/06/1998 (data da publicação da EC n° 19/98), ao proclamado fundamento de que, segundo o Relatório em que se baseou o r. acórdão do TCM, a Resolução n° 08/90 (que criou a GAL) e a Resolução n° 06/93 (que dispôs sobre a aplicação à GAL do instituto da permanência) não teriam sido recepcionadas pela EC n° 19/98 (cf. itens I, II e 3.3.4 desta manifestação).
11.2. Na época em que foram editadas as Resoluções n° 08/90 e n° 06/93, vigorava a redação original dos arts. 51, IV e 52, XIII da Constituição Federal de 1988, que atribuíam ao Poder Legislativo dispor sobre a remuneração dos cargos de seu serviço. Não havia a exigência de lei para a edição de normas nesta matéria. Por isso, a palavra “lei” contida no artigo 94 da Lei Orgânica do Município, à referida época aplicava-se (como ainda hoje se aplica) no referente aos servidores do Poder Executivo; quanto aos servidores do Poder Legislativo, só podia admitir o sentido de diploma legal da espécie Resolução. Interpretação diferente equivaleria a inquinar de invalidade a referida vantagem pecuniária, bem como outras, desde a sua criação – alvitre este, porém, descabido, por inconstitucional. (Cf. itens IV e VI.)
11.3. A suposta não-recepção das referidas Resoluções sobre a GAL, ao que se pode depreender dos elementos à guisa de sua fundamentação nos presentes autos, parece residir na idéia de que a alteração constitucional da forma de expressão legislativa, apta a disciplinar determinado assunto (conteúdo normativo), acarreta, como conseqüência, a não-recepção e decorrente revogação dos anteriores diplomas legislativos validamente trazidos ao ordenamento jurídico no tocante àquele conteúdo, diplomas esses, portanto, veiculados por outra forma legislativa anteriormente prevista (ao menos, que não comporte relação de abrangência ou de equivalência com a nova forma, em termos procedimentais). Trata-se no caso da alteração, promovida pela Emenda Constitucional n° 19/98, da espécie legislativa Resolução para a espécie legislativa Lei em sentido estrito, como forma prevista para a disciplina do conteúdo normativo consistente na remuneração dos servidores do Poder Legislativo (cf. itens II, III e IV, retro).
11.4. Entretanto, é certo que o princípio da recepção coloca-se quanto ao conteúdo da norma, não quanto à forma de sua expressão legislativa. De tal modo que, existindo compatibilidade material (de conteúdo, ou seja, entre o conteúdo da norma infraconstitucional válida anterior e o novo ordenamento constitucional adstrito a esse mesmo conteúdo), a alteração constitucional da forma legislativa não atinge os diplomas legislativos validamente editados pela forma legislativa antes constitucionalmente prevista, diplomas esses que são, assim, recepcionados. A forma legislativa é regida pela norma vigente ao tempo da edição do ato (regra “tempus regit actum”), de sorte que, desde que válido o diploma quando de sua edição, a forma legislativa é irrelevante para o efeito da recepção. A regra é que a alteração constitucional da forma legislativa, apta a disciplinar determinado assunto, tem efeito imediato para o futuro. (Cf. itens V e VI.)
11.5. À luz do ordenamento jurídico brasileiro, a Resolução n° 08/90 (no que criou a GAL) e a Resolução n° 06/93 (no que previu e disciplinou a permanência da GAL) foram recepcionadas pela Emenda Constitucional n° 19/98, eis que, validamente editados aqueles atos legislativos – isto é, editados com observância dos princípios e normas constitucionais vigentes quando de sua edição, seja quanto à forma (competência, iniciativa e procedimento), seja em relação ao seu conteúdo –, inexistiu incompatibilidade material entre os referidos conteúdos normativos daqueles atos legislativos e a EC 19/98, ou seja, inexistiu incompatibilidade entre o referido conteúdo normativo daquelas Resoluções e as normas da EC adstritas a esse mesmo conteúdo normativo (cf. itens V e VI).
11.6. Tendo sido recepcionadas, as referidas Resoluções continuaram em vigor até serem revogadas pela Lei Municipal nº 13.637/2003 (publicada no DOM/SP de 10/09/2003; segundo sua ementa, dispõe sobre a reorganização administrativa da CMSP e de seu Quadro de Pessoal, procede às adaptações necessárias às normas das Emendas Constitucionais nº 19/98 e 20/98 e dá outras providências). Nesta lei, a par de ser instituído novo regime para a remuneração dos servidores da CMSP, consta a expressa revogação da Resolução nº 08/90 e alterações posteriores (aí revogados também, portanto, os respectivos dispositivos da Resolução n° 6/93), nestes termos: “Art. 48 – Esta lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário, em especial a (…) Resolução nº 8, de 19 de outubro de 1990 e alterações posteriores, (…).” (Cf. itens V e VI.)
11.7. Assim, no ponto em questão, referente à GAL, o r. acórdão do E. TCM baseou-se em fundamento que se mostra inteiramente desprovido de sustentação jurídica, vale dizer: padece de ilegalidade, pois lastreado em fundamento jurídico insubsistente (cf. itens V, VI e VII).
11.8. A E. Mesa adotou as medidas legais cabíveis em face da r. decisão do E. TCM: determinou o levantamento de todos os servidores que se encontram na situação apontada, bem como a instauração deste devido processo legal, em que oportunizados o contraditório e a ampla defesa, assegurados no art. 5°, inciso LV da Carta Magna (cf. item VII).
11.9. Recomendado e instaurado o devido processo legal, decorre que o efeito vinculante da r. decisão do E. TCM não se estende a ponto de predeterminar ou prefixar, com força vinculante nesta parte, o sentido da decisão final do respectivo processo, pois isso significaria negação lógica e conceitual da garantia do devido processo legal, em ofensa ao art. 5°, inciso LV da Constituição Federal (cf. item VII).
11.10. Assim, a invalidação dos atos concessivos da vantagem pecuniária em tela ou do reconhecimento de sua permanência, objetos do presente procedimento, somente poderia então resultar de deliberação fundamentada da E. Mesa, ao final do mesmo, acaso restar convencida do cabimento da medida, em face dos dados e elementos de convicção carreados, sob o norte das normas legais (cf. item VII).
11.11. Todavia, à luz de tudo o que antes exposto, a presente manifestação é no sentido de que a justificativa preconizada para tal medida carece de fundamento jurídico, mostrando-se desguarnecida da necessária legalidade (cf. item VII).
11.12. Quanto ao ponto objeto dos presentes autos, o r. acórdão do E. TCM mostra contradição ao quanto expressamente disposto nos seguintes preceitos constitucionais e legais: art. 5°, inciso XXXVI da Constituição Federal (cf. item 9.1.1, retro); art. 37, incisos X e XV da Constituição (cf. itens 9.1.2 e 9.1.6, parte final); art. 39, § 1° da CF, com a redação dada pelo art. 5° da EC 19/98 (cf. item 9.1.2.1); arts. 3°, 5°, 9° e 10 da Emenda Constitucional n° 19/98 (cf. item 9.1.3); art. 2°, caput e §§ 1° e 2°, e art. 6, caput, do Decreto-lei n° 4.657, de 04/09/1942 – Lei de Introdução ao Código Civil (cf. itens 9.1.5 e 9.1.4, respectivamente); arts. 1° a 4° da Resolução n° 08/90, e alterações posteriores, e art. 1°, parágrafo único, da Resolução n° 06/93 (cf. item 9.1.6, parte inicial); bem como o princípio da legalidade insculpido no art. 37, caput da Carta Magna. (Cf. tópico IX, retro.)
11.13. Cabível, portanto, o recurso de revisão do r. acórdão do E. TCM, no ponto em tela, com base no art. 45, inciso V, combinado com art. 46, parágrafo único da Lei Municipal n° 9.167/80, no art. 148, inciso III e § 1°, bem assim, em sendo o caso, no art. 149 do Regimento Interno do E. TCM/SP (RI-TCM, aprovado pela Resolução TCM n° 03/2002), por contrariedade aos expressos mandamentos das disposições constitucionais e legais logo acima indicadas (cf. tópicos V a IX). Sendo de assinalar que se trata de recurso a ser recebido nos efeitos devolutivo e suspensivo, nos termos do art. 47 da Lei 9.167/80, bem assim, que constitui formalidade essencial da revisão, assim fundamentada, a indicação expressa dos dispositivos legais violados, com sua transcrição integral, a teor do art. 148, § 2° do RI-TCM (cf. tópico VIII). É a recomendação que ora cumpre manifestar.
11.14. Em conclusão, a manifestação é no sentido de ser proposto o recurso de revisão, conforme o exposto.
S.M.J., é o parecer que, com respeito e acatamento, submeto à elevada apreciação de V. Sa.
São Paulo, 08 de julho de 2004.
Sebastião Rocha
Assessor Técnico Legislativo (Juri)
OAB/SP n° 138.572
Indexação
GAL
Gratificação de apoio ao legislativo
Princípio da recepção
Permanência
Recurso de revisão
Fundamentos jurídicos
Ilegalidade
Emenda constitucional n° 19/98