Parecer nº 274/2016
Ref.: Memorando 49º GV n.º 23/16
Assunto: questionamento a respeito da possibilidade jurídica de outro ente público reeditar ato declaratório de utilidade pública de imóvel, para fins de desapropriação, antes do decurso do prazo de um ano – contado da caducidade do decreto expropriatório – previsto no art. 10 do Decreto-Lei n.º 3.365/41.
Sra. Procuradora Legislativa Chefe,
I – Trata-se de parecer solicitado a esta Procuradoria pelo ilustre Vereador xxxxxxxxxxxxxxxxxxx, em que é formulado questionamento a respeito da possibilidade de outro ente público – a exemplo do Poder Legislativo – reeditar ato declaratório de utilidade pública de imóvel, para fins de desapropriação, antes de decorrido o prazo de um ano da caducidade do decreto expropriatório originário.
A respeito da indagação, eis as ponderações jurídicas pertinentes:
II – A consulta remete à interpretação do disposto no art. 10, do Decreto-Lei n.º 3.365/41 (que dispõe sobre desapropriações por utilidade pública), in verbis:
Art. 10. A desapropriação deverá efetivar-se mediante acordo ou intentar-se judicialmente, dentro de cinco anos, contados da data da expedição do respectivo decreto e findos os quais este caducará.
Neste caso, somente decorrido um ano, poderá ser o mesmo bem objeto de nova declaração.
Parágrafo único. Extingue-se em cinco anos o direito de propor ação que vise a indenização por restrições decorrentes de atos do Poder Público.
O preceito fixa o prazo de 5 (cinco) anos para que seja promovida a desapropriação de imóvel declarado de utilidade pública, sob pena de caducidade do decreto expropriatório. Por caducidade da declaração de utilidade pública, deve-se compreender “a perda de validade dela pelo decurso de tempo sem que o Poder Público promova os atos concretos destinados a efetivá-la” (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. Malheiros, 20 ed., p. 828).
Mas o prazo mencionado não é fatal. O mesmo dispositivo determina que, decorrido um ano da caducidade, poderá ser o mesmo bem objeto de nova declaração.
A questão está em aferir se esse prazo de um ano para nova declaração é absoluto ou se é possível que outro ente público declare o imóvel de utilidade pública, antes do decurso desse interregno.
A caducidade da declaração de utilidade pública consiste em hipótese extintiva do ato administrativo, ocasionada pela inércia do Poder Público em promover as medidas tendentes à expropriação do bem.
Veja-se que, se de um lado a declaração de utilidade não implica, de per se, transferência da propriedade ao Estado, por outro, tem o condão de estabelecer restrições sobre o bem, tais como conferir ao Poder Público o direito de penetrar no prédio (DL n.º 3.365/41, art. 7º) e limitar benfeitorias no imóvel (DL n.º 3.365/41, art. 26, § 1º, e Súmula n.º 23/STF).
Ao lado dessas restrições legais, a plena fruição da propriedade é, também, de modo reflexo, prejudicada pelo certo grau de “incerteza” que se estabelece quanto à propriedade futura do bem, uma vez declarada a submissão deste à força expropriatória do Estado. Tome-se, por exemplo, a impraticabilidade da alienação de imóveis em situações que tais, não por inviabilidade jurídica, mas sim, pelas próprias leis de mercado, que tornam o negócio menos atrativo.
As agruras carreadas ao particular não podem ser perenizadas, sem o cumprimento do mandamento da justa indenização (CF/88, art. 5º, XXIV), o que somente ocorrerá com a transferência da propriedade. Destarte, por imperativos de razoabilidade e de segurança jurídica, estabeleceu o legislador um prazo para se ultimar a expropriação. O desatendimento do interregno fixado acarreta a caducidade do ato e libera o imóvel, por ao menos um ano.
É inarredável, assim, concluir que o instituto da caducidade guarda relevante viés punitivo. Pune-se o Poder Público desidioso, moroso na consecução do mister que lhe incumbia. E, tratando-se de sanção, inviável sua comunicação a terceiros estranhos a esse comportamento reticente.
Neste passo, portanto, deve-se obtemperar com o princípio da intranscendência subjetiva das sanções, que teve sua aplicação reconhecida pelo Supremo Tribunal Federal, conforme se pode inferir do seguinte julgado:
O postulado da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica superem a dimensão estritamente pessoal do infrator. Em virtude desse princípio, as limitações jurídicas que derivam da inscrição, em cadastros públicos de inadimplentes, das autarquias, das empresas governamentais ou das entidades paraestatais não podem atingir os Estados-membros, projetando, sobre estes, consequências jurídicas desfavoráveis e gravosas, pois o inadimplemento obrigacional – por revelar-se unicamente imputável aos entes menores integrantes da administração descentralizada – só a estes pode afetar. Os Estados-membros e o Distrito Federal, em consequência, não podem sofrer limitações em sua esfera jurídica, motivadas pelo só fato de se acharem administrativamente vinculadas a eles as autarquias, as entidades paraestatais, as sociedades sujeitas a seu poder de controle e as empresas governamentais alegadamente inadimplentes e que, por tal motivo, hajam sido incluídas em cadastros federais (CAUC, SIAFI, CADIN, v.g.) (STF – Tribunal Pleno – Ação Cível Originária n.º 1.848/MA – Rel. Celso de Mello – j. 06.11.2014).
Esse mesmo princípio é invocado a incidir na situação de caducidade de ato expropriatório, de modo que a vedação de nova declaração de utilidade, dentro do prazo de um ano, atinge apenas o ente público desidioso. Outros entes não estão impedidos de proceder à declaração de utilidade pública do mesmo imóvel, ainda que em momento anterior ao decurso do prazo de um ano, previsto no art. 10, do Decreto-Lei n.º 3.365/41.
Com a mesma compreensão, JOSÉ CARLOS DE MORAES SALLES leciona:
A proibição constante da parte final do art. 10 só atinge, portanto, o setor da Administração que permitiu ocorresse a caducidade do ato declaratório, que seria, assim, como que punido pela desídia em que incidiu ou pela precipitação com que se houve ao declarar a utilidade pública de um bem para fins de desapropriação, sem estar certo da pronta conveniência em efetivá-la (A Desapropriação à luz da doutrina e da jurisprudência. RT, 3ª ed., p. 229).
E essa limitação à incidência do art. 10, do Decreto-Lei n.º 3.365/41, opera efeitos tanto (i) verticais quanto (ii) horizontais.
Vale dizer, (i) caduco o decreto expropriatório editado por Estado, nada obsta que antes do decurso de um ano desse evento, o Município, com domínio eminente sobre o mesmo bem, o declare de utilidade pública.
Da mesma forma, (ii) havendo caducidade do decreto expropriatório editado pelo Poder Executivo – ou entidades a ele vinculadas –, não se verifica impedimento a que os outros Poderes da mesma unidade da federação, tal como o Poder Legislativo, declarem a utilidade pública do mesmo imóvel, antes do decurso do prazo do art. 10, do Decreto-Lei n.º 3.365/41.
Não obstante as ponderações tecidas até o momento, é imperioso registrar a elementar constatação de que a nova declaração de utilidade pública, expedida por outro ente público, não pode ter por objetivo fraudar o instituto da caducidade e, assim, aviltar o princípio da segurança jurídica e a confiança do cidadão.
Dessa forma, para que seja lícita à luz desses princípios – que possuem assento constitucional, como consectários do princípio do Estado de Direito (confira-se, a esse respeito: MENDES, Gilmar Ferreira e BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. Saraiva, 6 ed., p. 431) – é imprescindível que a edição do novo ato expropriatório se funde em utilidade pública diversa da anterior. O motivo do ato expropriatório deve, portanto, ser distinto do pretérito, com vistas a que se não incorra em nulificação do objetivo último do legislador: punir o ente público desidioso ou açodado.
III – Em conclusão:
(1) Havendo caducidade do decreto expropriatório editado pelo Poder Executivo – ou entidades a ele vinculadas –, é possível que os outros Poderes do mesmo ente federativo, tal como o Poder Legislativo, declarem a utilidade pública do mesmo imóvel, antes do decurso do prazo de um ano, previsto no art. 10, do Decreto-Lei n.º 3.365/41.
(2) O novo ato expropriatório deve se fundar em razões de utilidade pública distintas das que embasaram o primeiro ato, com vistas a que se não incorra em fraude à lei.
Este é o parecer que submeto à Vossa criteriosa apreciação.
São Paulo, 25 de julho de 2016.
CYRO VARGAS JATENE
Procurador Legislativo
OAB/SP nº 285.594