Parecer Chefia nº 002/2019
Ref.: TID 1827141
Assunto: Requerimento Sindilex – xxxxxxxx de 20 de março de 2019 – averiguação primária e apuração preliminar – distinção – legalidade
À Presidência,
Sr. Chefe de Gabinete,
O Sindicato dos Servidores da Câmara Municipal e do Tribunal de Contas do Município de São Paulo ‒ SINDILEX, por sua Presidente, xxxxxxxxxxx, encaminhou à Presidência requerimento afirmando ter-lhe causado estranhamento “o rito pouco ortodoxo” utilizado pela Câmara Municipal para a apuração de denúncias feitas pela xxxxxxxx no dia 20 de março de 2019 (que mencionava pretensos depoimentos de servidores sob anonimato), apuração que consistira em “documento encaminhado pelo Secretário Geral Administrativo desta Câmara Municipal à Procuradora Chefe”, solicitando manifestação escrita de todos os servidores lotados na Secretaria Geral Parlamentar, a propósito de fatos supostamente ocorridos no Plenário.
Em síntese, no entender da entidade requerente, tal solicitação de manifestação escrita teria instalado “clima de constrangimento generalizado” entre os funcionários envolvidos, e teria uma eficácia questionável. Ademais, tal procedimento não encontraria respaldo no rito descrito pelo Ato da CMSP nº 1421/2019, pois a Apuração Preliminar, que antecede eventual Sindicância, deve ter sua instauração publicada e “consiste na oitiva das pessoas envolvidas ou que possam contribuir para o esclarecimento dos fatos” (art. 70 do Ato), além de que “o depoente ou o investigado pode ser acompanhado de advogado, que terá acesso aos elementos de prova, já documentados, que digam respeito ao exercício do direito de defesa” (art. 70, § único). Aduz ainda que a apuração de denúncias anônimas deve revestir-se de cautelas ainda maiores, protegendo o servidor público de acusações caluniosas vindas de colegas ou terceiros protegidos pelo anonimato, e que é dever da Administração apurar eventuais ilícitos, mas também evitar danos ao denunciado.
Com tal linha argumentativa, “exige” o SINDILEX “que seja tornada sem efeito a determinação expedida pela Secretaria Geral Administrativa à Procuradoria desta Câmara”, a fim de que “a apuração de eventuais irregularidades cometidas por servidores respeite o devido processo legal”. Por outro lado, requer que seja “realizado chamamento às supostas testemunhas ouvidas pela imprensa, para que, mesmo permanecendo em anonimato, encaminhem maiores detalhes sobre os atos ilícitos”.
Encaminhado o presente expediente a esta Procuradoria, para conhecimento, exame e instrução de resposta, passo a manifestar-me.
Dispõem os arts. 2º e 3º, inciso I, do Ato da Mesa 1421/2019, que disciplinam a matéria em questão:
Art. 2º A autoridade que tiver ciência de irregularidade no serviço público é obrigada a tomar providências objetivando a apuração dos fatos e a responsabilidade.
- 1º A denúncia anônima não autoriza a instauração imediata de procedimento administrativo disciplinar, cabendo à autoridade promover a averiguação primária do quanto noticiado, preservada a intimidade e a não exposição da pessoa denunciada.
- 2º Constatada a existência de indícios de irregularidade, caberá à autoridade determinar a abertura de procedimento administrativo disciplinar.
Art. 3º São procedimentos administrativos disciplinares:
I- preparatórios:
- a) a Apuração Preliminar (artigos 67 a 73);
- b) a Sindicância (artigos 74 a 79).
Certo é, pois, que toda autoridade que tenha ciência de irregularidade no serviço público tem o poder-dever de tomar providências objetivando a apuração dos fatos e a responsabilidade respectiva.
Porém, como medida de elementar prudência, diante de uma denúncia de irregularidades, que não esteja respaldada com indícios suficientes de autoria e de materialidade, e sobretudo quando se trata de denúncia anônima, indispensável que a autoridade verifique se há elementos suficientes que justifiquem a mobilização de recursos para apurá-la. Nesse sentido, o art. 2º, § 1º, do Ato da Mesa nº 1421/19, prevê que a caberá à autoridade, diante de uma denúncia anônima, promover uma “averiguação primária“, e não abrir automaticamente um procedimento administrativo disciplinar, seja ele preparatório ou não.
Deste modo, a abertura de procedimento administrativo disciplinar (dentre eles os procedimentos administrativos disciplinares preparatórios previstos no art. 3º, inciso I, alíneas “a”, Apuração Preliminar, e “b”, Sindicância), somente poderá ocorrer se for “constatada a existência de indícios de irregularidade” (art. 2º, § 2º do do Ato 1421/2019).
Não há, pois, como confundir-se a “averiguação primária”, que é informal ‒ uma vez que seus procedimentos não estão fixados pelo Ato da Mesa ‒, com a “Apuração Preliminar”, que consiste em um “procedimento disciplinar de preparação e investigação” (art. 67, c/c art. 3º, inciso I, alíneas “a” do Ato 1421/19), cuja abertura é determinada pela autoridade depois de “constatada a existência de indícios de irregularidade” ( art. 2º, § 2º do Ato 1421/19). Em razão de os elementos de prova estarem presentes no procedimento disciplinar ‒ o que não se verifica na averiguação primária ‒ é que “o depoente ou o investigado pode ser acompanhado de advogado, que terá acesso aos elementos de prova, já documentados, que digam respeito ao exercício do direito de defesa” ( art. 70, § único, do Ato nº 1421/2019).
Não assiste razão, portanto, ao SINDILEX, em suas considerações, uma vez que parece haver confundido os procedimentos averiguação primária e apuração preliminar, tratados com nítida diferenciação pelo Ato 1421/19, em consonância, de resto, com a doutrina e a jurisprudência pátrias.
Com efeito, a averiguação primária equivale à “instrução prévia”, a respeito da qual Austregésilo Brito escreve:
“Trata-se de providência prévia com a finalidade de respaldar o administrador quanto à instauração de Sindicância, de PAD ou de arquivamento de denúncia. Embora haja denúncia ou representação formal, o administrador pode proceder a Instrução Prévia. É informal e dispensa comissão. Qualquer servidor pode ser designado para cumprir essa Instrução, dela devendo apresentar relatório circunstanciado sobre o fato denunciado. É indicada também para a denúncia anônima, evitando instauração de processos indevidos e dispêndio de recursos públicos (in Manual de Processo Disciplinar, Ed. Quixote, Piauí, 2007, p. 13; os grifos não constam do original).
No mesmo sentido, a Controladoria Geral da União, por meio do seu Manual de Treinamento para formação de membros de comissões para processo administrativo disciplinar (2011) ensina que “a autoridade não se precipitará a instaurar a sede disciplinar, com todos os ônus a ela inerentes, à vista tão-somente de uma denúncia anônima”. E o mesmo manual adverte que o juízo de admissibilidade de procedimentos disciplinares deve ser feito “com extrema cautela e enriquecido por investigação preliminar, ainda mais se enfatiza tal recomendação em notícia originada anonimamente. Nesses casos, deve-se proceder com maior cautela, antes de se decidir pela instauração do processo, para evitar precipitada e injusta ofensa à honra do servidor (vez que o anonimato pode tentar ocultar vieses de pessoalidade e de animosidade), promovendo investigação preliminar e inquisitorial ainda mais criteriosa, aprofundada, crítica e exigente”.
Essa solução encontrada para analisar denúncias anônimas, acolhida pelo Despacho do Consultor-Geral da União nº 396/2007, foi também aprovada pelo então Advogado Geral da União José Antonio Dias Toffoli, que acrescentou, entre outras, as seguintes considerações:
“c) O Poder Público, provocado por delação anônima (disque-denúncia, por exemplo) pode adotar medidas sumárias de verificação, com prudência e discrição, sem formação de processo ou procedimento, destinadas a conferir a plausibilidade dos fatos nela denunciados. Acaso encontrados elementos de verossimilhança, poderá a autoridade formalizar a abertura do processo ou procedimento cabível, desde que mantendo completa desvinculação destes em relação à peça apócrifa, ou seja, desde que baseado nos elementos verificados pela ação preliminar do próprio Estado”.
Destaque-se ainda, nessa mesma linha de orientação, a recente Instrução Normativa editada pela Controladoria Geral da União nº 14/2018 (D.O. U de 16/11/2018, Seção 1, pg. 102) que, em seu art. 11, parágrafo único, assinala:
“Art. 11. Presentes indícios de autoria e materialidade, será determinada a instauração de procedimento correcional acusatório, sendo prescindível a existência de procedimento investigativo prévio.
Parágrafo único. A informação anônima que noticie a ocorrência de suposta infração correcional poderá deflagrar procedimento correcional acusatório, desde que sejam colhidos outros elementos que a respaldem”.
Importante, também, nesse sentido, o seguinte julgado do STF:
EMENTA: A INVESTIGAÇÃO PENAL E A QUESTÃO DA DELAÇÃO ANÔNIMA. DOUTRINA. PRECEDENTES. PRETENDIDA EXTINÇÃO DO PROCEDIMENTO INVESTIGATÓRIO, COM O CONSEQÜENTE ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO POLICIAL. DESCARACTERIZAÇÃO, NA ESPÉCIE, DA PLAUSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. MEDIDA CAUTELAR INDEFERIDA.
– As autoridades públicas não podem iniciar qualquer medida de persecução (penal ou disciplinar), apoiando-se, unicamente, para tal fim, em peças apócrifas ou em escritos anônimos. É por essa razão que o escrito anônimo não autoriza, desde que isoladamente considerado, a imediata instauração de “persecutio criminis”.
– Peças apócrifas não podem ser formalmente incorporadas a procedimentos instaurados pelo Estado, salvo quando forem produzidas pelo acusado ou, ainda, quando constituírem, elas próprias, o corpo de delito (como sucede com bilhetes de resgate no crime de extorsão mediante seqüestro, ou como ocorre com cartas que evidenciem a prática de crimes contra a honra, ou que corporifiquem o delito de ameaça ou que materializem o “crimen falsi”, p. ex.).
– Nada impede, contudo, que o Poder Público, provocado por delação anônima (“disque-denúncia”, p. ex.), adote medidas informais destinadas a apurar, previamente, em averiguação sumária, “com prudência e discrição”, a possível ocorrência de eventual situação de ilicitude penal, desde que o faça com o objetivo de conferir a verossimilhança dos fatos nela denunciados, em ordem a promover, então, em caso positivo, a formal instauração da “persecutio criminis”, mantendo-se, assim, completa desvinculação desse procedimento estatal em relação às peças apócrifas (STF, HC 100042 MC/RO, Rel. Min. Celso de Mello, DOU 2/10/09).
No caso da matéria objeto da reportagem da xxxxxxxx, datada de 20 de março de 2019, o Sr. Presidente da Edilidade, com prudência e discrição, com a finalidade de conferir a plausibilidade dos fatos referidos na reportagem, pretensamente embasados por denúncias anônimas, determinou à Secretaria Geral Administrativa o procedimento descrito no TID 18234064, com prévio e posterior encaminhamento das informações colhidas à Procuradoria.
Tratou-se, pois de uma averiguação primária. Segundo o elevado crivo da E. Mesa, os elementos colhidos não reuniram indícios suficientes de materialidade aptos a respaldar a imediata instauração de procedimento disciplinar.
Isto posto, a E. Mesa, por meio da Decisão nº 4156/2019, publicada em 28 de março de 2019, encaminhou os elementos contidos no expediente TID 18234064 à Corregedoria e, por solicitação do Nobre Vereador José Police Neto, ao Ministério Público, juntamente com os demais elementos contidos no TID 18234395, sem prejuízo de ulteriores providencias por parte da E. Mesa caso surjam novos elementos. Assim, plenamente legais, e de acordo com a doutrina e a jurisprudência pátrias, os procedimentos adotados pela E. Mesa em face da reportagem da xxxxxxx mencionada, não assistindo razão ao SINDILEX em suas ponderações.
Registre-se ainda o equívoco do SINDILEX em sua petição ao afirmar que se trata de “determinação expedida pela Secretaria Geral Administrativa à Procuradoria desta Câmara”. Tratou-se, como exposto, de determinação da Presidência, que, submeteu os elementos colhidos no âmbito da Secretaria Geral Parlamentar à E. Mesa, havendo esta, no uso de suas atribuições, expedido a Decisão nº 4156/2019, no bojo do TID 18234395, como mencionado.
Finalmente, parece-me contraditório o pedido do Sindicato requerente, no sentido de seja “realizado chamamento às supostas testemunhas ouvidas pela imprensa, para que, mesmo permanecendo em anonimato, encaminhem maiores detalhes sobre os atos ilícitos”. Com efeito, não vislumbro como a E. Mesa poderá promover o “chamamento” de supostas testemunhas permanecendo as mesmas no anonimato para oferecer “maiores detalhes” sobre os ilícitos eventualmente presenciados. Tal pedido há de ser indeferido por ser logicamente impossível. De todo modo, não se pode deixar de mencionar que, transcorrido quase um mês da matéria veiculada pela xxxxxxxx, não se tem notícia de que os supostos informantes da xxxxxxx tenham se disposto a relatar as denúncias perante às instâncias competentes da Casa ou perante órgãos de controle externos, eventualmente sob anonimato, o que corrobora a prudência da averiguação primária determinada pela Presidência e avalizada pela E. Mesa.
Em razão de todo o exposto, sugiro o indeferimento do pedido apresentado pelo SINDILEX, por ausência de amparo legal, encaminhando-se cópia do presente parecer à subscritora do pedido, representante da entidade.
São Paulo, 15 de abril de 2019.
MARIA NAZARÉ LINS BARBOSA
Procuradora Legislativa Chefe
OAB/SP 106.017