São Paulo, 21 de setembro de 2018.
Parecer nº 324/2018
Assunto: Consulta acerca dos aspectos constitucionais e legais do Projeto de Lei nº 318/2017, que “revoga legislação ociosa da década de 80 e 90 do Século XX e da primeira década do Século XXI”.
Sra. Procuradora Legislativa Supervisora,
Trata-se de consulta formulada por correio eletrônico a esta Procuradoria pela assessoria do nobre Vereador XXXXXXX, integrante da Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa desta Casa e relator do Projeto de Lei nº 318/2017, de autoria do nobre Vereador XXXXXXXXXXXXXX, que “revoga legislação ociosa da década de 80 e 90 do Século XX e da primeira década do Século XXI”, acerca dos aspectos constitucionais e legais do referido projeto.
Segundo consta da correspondência recebida por este Setor do Processo Legislativo, indaga-se a opinião desta Procuradoria a respeito de um aspecto essencial presente na justificativa apresentada junto à propositura em questão, relativamente a leis que se pretende revogar, as quais seriam “atos administrativos em forma de lei, que já produziram seus efeitos”, tais como leis de reajustes salariais, denominações, autorizações para a celebração de convênios, doações de áreas e aprovação de novos traçados.
Passo a esclarecer as indagações formuladas pelo consulente.
O PL nº 318/2017, em trâmite perante a Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa, dispõe sobre a revogação conjunta de centenas de normas do ordenamento jurídico municipal, as quais estariam “ociosas”.
Em princípio, a revogação pura e simples de normas jurídicas não está sujeita a limitações de ordem constitucional ou legal, desde que sejam observados alguns aspectos formais e materiais atinentes à lisura do processo legislativo.
No tocante às formalidades que envolvem o processo legislativo, a principal delas diz respeito à autoria do projeto de lei, a qual, em regra, pode ser de qualquer membro ou Comissão integrante do Poder Legislativo ou do Chefe do Poder Executivo, ressalvada a iniciativa popular (arts. 14, III, 27, § 4º, e 29, XIII, da Constituição da República).
Em algumas hipóteses, a Constituição Federal exige que o processo legislativo seja iniciado pelo Presidente da República, quando a matéria diga respeito a algum aspecto estrutural da Administração Pública, tal como criação de cargos públicos, remuneração de servidores etc. Trata-se de função atípica daquele órgão, por envolver atividade essencialmente legislativa, mas que se justifica em razão do princípio da separação de poderes. Essa regra é aplicável aos demais entes federativos, por incidência do princípio da simetria, vide o posicionamento atual do Supremo Tribunal Federal (ADI nº 4.000/SP; ADI nº 821/RS, entre outras).
Na mesma linha do que se adota no momento da aprovação, a revogação das leis deve observar as hipóteses de inciativa privativa do Poder Executivo, de modo a manter-se a harmonia e a independência dos Poderes. Sendo assim, as leis cujas matérias demandem a manifestação de vontade inicial do Prefeito para a deflagração do processo legislativo também devem ser retiradas do ordenamento jurídico mediante iniciativa governamental.
No que diz respeito ao conteúdo, a revogação de qualquer norma deve preservar o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada (art. 5º, XXXVI, da Constituição da República), portanto, se qualquer destes for prejudicado pela lei revogadora, ela se tornará inconstitucional.
Outro aspecto importante que cerca a questão da revogação massificada de leis é a observância do disposto na Lei Complementar Federal nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, que dispõe sobre a elaboração, a redação, a alteração e a consolidação das leis, em especial seu art. 7º, I e II, do qual se extrai a norma segundo a qual cada lei somente pode tratar de um determinado assunto. Para guardar um paralelo com tal dispositivo aplicável à edição de leis, não seria desarrazoado sustentar que a sua revogação, para seguir a mesma técnica legislativa, se desse por grupos temáticos.
Há que se atentar ainda ao que dispõe a LINDB – Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (Decreto-Lei Federal nº 4.657, de 4 de setembro de 1942), no caput do art. 2º e seus parágrafos:
Art. 2º Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.
§ 1º A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.
§ 2º A lei nova, que estabeleça disposições gerais ou especiais a par das já existentes, não revoga nem modifica a lei anterior.
§ 3º Salvo disposição em contrário, a lei revogada não se restaura por ter a lei revogadora perdido a vigência.
Inicialmente, há que se verificar se, dentre as leis que se pretende revogar com o PL nº 318/2017, existem leis com vigência temporária, pois estas, conforme se extrai da norma do caput acima transcrita, não dependem de revogação (expressa ou tácita) para que percam sua vigência. Nesta espécie de leis podemos citar as seguintes: (I) que declaradamente se destinam à vigência temporária, estabelecendo um prazo certo ou um termo final de vigência, deixando de produzir efeitos após o seu decurso; (II) cuja temporariedade resulta de sua natureza, tais como as leis orçamentárias, que se destinam à vigência em um determinado exercício; (III) destinadas a um fim certo e determinado, tais como aquelas que abrem um crédito extraordinário ou concedem uma subvenção; (IV) editadas em razão de uma situação passageira como, por exemplo, aquelas que busquem atender a situações específicas de emergência ou calamidade.
De outro lado, a LINDB não exige revogação expressa de uma lei, a qual pode ser retirada do ordenamento jurídico de modo tácito, quando uma lei posterior seja com ela incompatível ou disponha inteiramente sobre a mesma matéria. Portanto, o próprio legislador, ao fixar normas gerais sobre a criação e a modificação do direito, já previu a desnecessidade de revogação expressa de cada lei, criando mecanismos de autorregulação do ordenamento, ao passo em que a sociedade evolui, independentemente de uma atividade proativa do legislador.
A esse respeito, aprendemos com a doutrina de Carlos Maximiliano:
Dá-se a revogação expressa em declarando a norma especificadamente quais as prescrições que inutiliza; e não pelo simples fato de se achar no último artigo a frase tradicional – revogam-se as disposições em contrário: uso inútil; superfetação; desperdício de palavras, desnecessário acréscimo! Do simples fato de se promulgar lei nova em contrário, resulta ficar a antiga revogada. Para que perderem tempo as Câmaras em votar mais um artigo, se o objetivo do mesmo se acha assegurado pelo anteriores? Nos textos oficiais se não inserem palavras supérfluas.
(in “Hermenêutica e Aplicação do Direito”, 20ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2011)
Portanto, cumpre aferir se, no rol de leis constante do art. 2º do PL nº 318/2017, existem leis que tenham sido revogadas de forma tácita, seja por incompatibilidade lógica ou por regulamentação integral da mesma matéria por novos diplomas legais.
Tanto as leis temporárias cujo prazo já tenha sido expirado quanto as leis tacitamente revogadas já não se encontram mais em vigência no ordenamento jurídico, não havendo justificativa para serem mantidas no projeto revogatório.
Para tais espécies normativas, que não mais se encontram em vigor, bastaria a declaração de sua revogação, através de projeto de lei de consolidação, nos termos do art. 14, § 3º, I, da Lei Complementar Federal nº 95, de 26 de fevereiro de 1998. Aqui não cabe confundir a revogação de uma lei com a declaração de sua revogação, pois, enquanto na primeira a lei revogadora retira outra de sua vigência no ordenamento jurídico, possuindo caráter constitutivo, na segunda a lei consolidativa apenas reconhece, de modo oficial, que uma ou algumas leis foram revogadas em momento anterior, possuindo caráter meramente declaratório.
No tocante às leis orçamentárias, trata-se de leis de efeitos concretos ou leis em sentido meramente formal, e já nascem com o objetivo de serem aplicadas apenas em um determinado exercício financeiro, equivalente a um ano civil (vide os arts. 34 a 39 da Lei Federal nº 4.320, de 17 de março de 1964), de modo que a sua revogação seria inócua, não produzindo qualquer efeito no ordenamento jurídico.
Além das leis orçamentárias, a Lei Orgânica Municipal prevê diversas espécies de normas de efeitos concretos a serem editadas por esta Casa, dentre elas a autorização para a obtenção ou concessão de empréstimos e operações de crédito (art. 13, V), a autorização para a alienação ou a aquisição de bens imóveis municipais (art. 13, X e XI), e a autorização para firmar convênios e consórcios (art. 13, XV), denominação e alteração de denominação de vias e logradouros públicos (art. 13, XVII e XXI), dentre outras.
No caso das autorizações conferidas ao Poder Executivo, a lei aprovada e sancionada serve de embasamento jurídico para o ato ou contrato administrativo a ser realizado, de modo que, até a extinção de seus efeitos, a revogação da lei ensejará insegurança jurídica aos administrados, pois a validade do ato ou contrato poderá ser questionada, por falta de autorização legislativa superveniente, elemento essencial à sua conformação.
No que tange às leis que conferem denominação a vias, logradouros e próprios no Município, em que pese tratar-se de normas desprovidas dos atributos de generalidade e abstração, a sua revogação pura e simples, sem que haja nova denominação, implicará a ausência de nome para tais ruas, avenidas etc, o que produz efeitos sobre todas as relações jurídicas travadas em torno do domicílio das pessoas que residem ou trabalham naqueles locais, por exemplo, dentre outras consequências jurídicas e práticas previsíveis.
Por fim, cumpre salientar que algumas das leis incluídas no PL nº 318/2017 para serem revogadas, como aquelas que tratam de reajustes remuneratórios de servidores públicos, não podem ser caracterizadas como meras leis de efeitos concretos. Tais leis possuem caráter genérico e abstrato, portanto continuam a produzir seus efeitos até eventual revogação (expressa ou tácita) e, caso sejam extirpadas da ordem jurídica sem que haja outras em substituição, restará vácuo normativo quanto ao seu objeto. Trata-se de leis em sentido material e, ao menos, deve-se atentar às consequências jurídicas e práticas de sua revogação, tais como a irredutibilidade de vencimentos e proventos assegurada pela Constituição Federal (art. 37, XV).
De todo o exposto, conclui-se que a revogação expressa das leis, embora não seja necessária, é facultada ao legislador, desde que respeitados alguns postulados jurídicos, tais como a preservação do direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada, a técnica legislativa prevista na Lei Complementar Federal nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, e as normas gerais de direito contidas na LINDB.
Este é o parecer que submeto à apreciação de Vossa Senhoria.
MICHEL ALLAN MOFSOVICH
Procurador Legislativo
OAB/SP 277.803
RF 11.494