A dona Gertrude Vigar chegou onde poucos têm o privilégio: completou 106 anos de idade. Nasceu em 19 de novembro de 1911 na cidade de Wigan, ao norte da Inglaterra. Após mais de um século de vida, não é preciso dizer que são inúmeras as histórias para contar.
A primeira delas, e talvez a mais marcante, aconteceu na infância. Logo aos quatro anos, sua mãe Florance disse que Charles, seu pai, teria de partir para combater na Primeira Guerra Mundial.
Gertrude era uma filha muito apegada e, apesar de ainda muito jovem para entender a gravidade da situação, ficou tão triste com a notícia que se escondeu dentro de um armário embaixo para chorar. Assim que saiu de lá, se deparou com o pai pela última vez e jamais se esqueceu daquela imagem. Charles foi para a Guerra naquele dia e nunca mais voltou para casa.
Apesar da perda dramática, Gertie, como é carinhosamente chamada, teve uma infância tranquila. Desde pequena já sonhava em lecionar. Uma de suas brincadeiras preferidas era improvisar um quadro negro e uma sala de aula para ensinar os amigos. O gosto de menina a acompanhou pela juventude: formou-se professora primária na Universidade de Wigan, em 1934.
Depois de frequentar a faculdade, aos 23 anos, Gertrude foi passar férias com sua tia em Londres. Ao visitar o famoso Hyde Park, ficou encantada com um rapaz que falava de forma eloquente na Speaker’s Corner, um tradicional espaço de discursos públicos na capital inglesa.
Foi amor à primeira vista: o rapaz, chamado George, se tornaria seu marido. A felicidade, no entanto, estava novamente em risco. Quando a Segunda Guerra Mundial eclodiu, Gertie e George se juntaram a um grupo de amigos em um navio e fugiram para o Paraguai. Lá eles abriram uma pequena escola e conseguiram criar seus 7 filhos, com espaço para cachorros e cavalos.
Cidadã Paulistana
Quando tinha 45 anos de idade, Gertrude e o marido decidiram voltar para a Inglaterra. Mas no caminho de volta para seu país de origem, aproveitaram que o navio iria ancorar em Santos para visitar seu filho Nicholas, que vivia na cidade.
Assim que chegou, Gertie se apaixonou pela capital paulista e mudou de planos no mesmo dia. George conseguiu um emprego e o casal nunca mais foi embora.
A relação de amor de mais de seis décadas com a cidade motivou o reconhecimento da Câmara Municipal à sua história de vida. Nesta segunda-feira (19/2), Gertrude Vigar recebeu, no Plenário da Casa, o Título de Cidadã Paulistana.
A iniciativa foi do vereador Atílio Francisco (PRB). “Ela veio da Inglaterra, fugindo da guerra, se estabeleceu um tempo no Paraguai e quando veio visitar sua família em São Paulo se encantou pela cidade. E hoje, com 106 anos, continua morando e vivendo aqui, sendo feliz em São Paulo. Então o objetivo de conceder esse Título de Cidadã Paulistana é exatamente por essa lição de vida que ela dá para a gente. E para nós da Câmara prestar essa homenagem a ela significa também mostrar que são Paulo é uma cidade acolhedora e abençoada Deus”, disse.
Ao todo, Gertrude deu à luz oito filhos. A quinta, por ordem de nascimento, é Damaris Vigar. Aos 72 anos, ela diz que a maior qualidade da mãe é a personalidade.
“É uma pessoa de extremo bom senso e que fez tudo certo para se cuidar na vida. Então eu penso
que isso contribuiu com a longevidade dela. Ao mesmo tempo a compaixão, a solidariedade, coisas que de alguma forma precisam ser incorporadas na vida da gente. E sempre comeu certinho, se exercitou e, acima de tudo, exercitou a cabeça”.
O neto Rodrigo Duarte Vigar é outro que não poupa a avó de elogios. “Ela sempre foi muito doce. Sempre gostou muito de jardinagem. E também dava aulas de inglês. É uma pessoa companheira com quem eu sempre conversei bastante. Imagina uma pessoa de cento e poucos anos? Quantas histórias não tem, né? Sobre a época de quando eles vieram. De como foi o tempo no Paraguai. E de como era a vida na Inglaterra. Enfim, até hoje ela ainda conta bastante história”, ressaltou.
Fundação Britânica
Quando seu marido faleceu, em 2004, Gertrude passou a residir no lar de idosos Stacey House, da Fundação Britânica de Beneficência.
Por causa da idade, Gertrude não pode comparecer à homenagem. Mas segundo a vice-presidente do Conselho da entidade, Rachel Govief, a mais nova cidadã paulistana está mantendo a melhor qualidade de vida possível.
“A Gertie está numa instituição de longa permanência. Damos todo o apoio para ela. Damos o carinho para que ela tenha a vida digna que precisa. Lá ela pode tomar o chazinho da tarde dela, como uma boa inglesa [risos]. Ela toma o chazinho, conversa e gosta de receber gente para papear. E ainda se levanta, anda, tem uma boa vida social”, disse.
A Fundação Britânica de Beneficência também foi homenageada na Câmara com a Salva de Prata, uma das mais altas honrarias da Casa, destinada a instituições que prestam serviços relevantes à sociedade de São Paulo.
“Começamos há 70 anos recebendo doações da própria comunidade britânica. Nosso trabalho é focado na comunidade. E de uns anos para cá começamos a focar mais nos idosos de São Paulo. Um dos projetos que estamos fazendo se chama ‘Cuidar’. É pegar o idoso na casa dele, levar no médico, garantir o carinho e o respeito que ele merece”, concluiu Rachel”.
Para o vereador Atílio Francisco, estender o reconhecimento à Fundação que cuida do bem estar de Gertrude e de muitos outros idosos é mais que justo. “Essa entidade está aqui em São Paulo desde 1947, prestando serviço social. E ela tem vários programas importantíssimos para as pessoas da terceira idade. E quando nós tomamos conhecimento desse trabalho, da forma como eles investem na pessoa idosa, decidimos prestar essa homenagem. Tenho certeza de que, a partir de hoje, a Fundação vai crescer ainda mais com esse reconhecimento da Câmara”, afirmou o parlamentar.