Agência Brasil
Professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP desde a década de 70, Ermínia é uma das mais respeitadas urbanistas do país, não só por sua produção acadêmica, mas também pela atuação política e experiência no poder Executivo: foi secretária de habitação da cidade durante a gestão de Luiza Erundina e secretária executiva do Ministério das Cidades no início do governo Lula.
A experiência de décadas na luta pela reforma urbana a levou a conhecer um sem número de leis, planos e programas bem intencionados e progressistas, mas que na prática eram solenemente ignorados pelo poder público. Nesse rol inclui o Plano Diretor aprovado em 2002, que pouco teria mudado a estrutura desigual da urbe paulistana.
No país das obras sem planos e planos sem obras, sua solução para quebrar esse paradigma é elaborar um instrumento que efetivamente controle e oriente os investimentos na cidade, tanto públicos como privados, evitando o vale-tudo do mercado imobiliário.
Confira a entrevista:
Portal CMSP – Primeiro eu queria que você falasse um pouco sobre sua visão a respeito do Plano Diretor. Você já disse em outras entrevistas que tem a impressão que estamos produzindo um monte de papéis e não interferindo na realidade das cidades.
Ermínia Maricato – Os planos diretores são leis, e, como grande parte da legislação brasileira, muitos deles não são aplicados ou são aplicados de acordo com as circunstâncias. Eu, em mais de 40 anos de vida profissional e acadêmica, fico muito impressionada com o número imenso de casos que conheci de leis que são aplicadas pelo inverso. A legislação brasileira, principalmente essa legislação que trata do solo, é muito pró-justiça social. Tanto a legislação que se aplica ao campo como a que se aplica à cidade. Como é o caso do Estatuto da Cidade, que é uma lei festejada no mundo inteiro. Mas o Estatuto da Cidade é uma lei ignorada no Brasil, pode-se dizer.
Eu lembro muito de uma frase do Sérgio Buarque de Hollanda, que no Raízes do Brasil comenta como você tem uma cultura livresca no país. Uma cultura de discurso, que está distante da realidade. Ele diz que a vida morre asfixiada, enquanto você tem uma esfera de produção literária, de discursos, de debates que não se cola na realidade. Enquanto isso, a cidade é um desgoverno, porque é orientada por interesse privados. Quem pode mais, chora menos.
CMSP – E nesse contexto, como fica o Plano Diretor?
EM – O Plano Diretor é o rei desse papel. Ele é o fetiche, o mito, principalmente na mídia. Isso eu canso de ouvir: “a cidade não tem planejamento”. São cidades que têm planos, porque todas as cidades brasileiras têm, mas elas não seguem os planos.
CMSP – Mas as determinações do Plano Diretor não são vagas demais?
EM – Sem dúvida. No Brasil, outra coisa que a gente vê é que as leis não são autoaplicáveis. Quando ferem os interesses dos poderosos, elas não são autoaplicáveis. Elas são vagas. Então, no Plano Diretor, as questões mais importantes ficaram remetidas às leis complementares, o que depois não se faz.
É possível aplicar o Plano Diretor. É uma diretriz investir mais em transporte coletivo. Não tem como não entender isso. Ou você aplica ou não aplica, não dá pra dizer que precisa de uma lei complementar. Mas aí vem alguém e diz que falta uma lei sobre o transporte coletivo. Que defina como ele vai ser prioridade, como será planejado.
Outra coisa que é comum no Brasil é a interpretação da lei. Por exemplo: despejo de população que não tem alternativa de moradia. Isso fere um monte de leis. E há momentos em que a gente tem que dizer isso para os juízes. Porque parece que os eles julgam despejos pelo Código Civil de 1917. É como se a propriedade fosse inviolável, absoluta. Ou eles não conhecem as leis ou o ideológico toma o lugar da lei. De alguma forma, o interesse privado sempre prevalece.
CMSP – Então você acha que o Plano Diretor não serve para muita coisa, na prática?
EM – É muito importante lembrar que quando a gente defendeu a proposta de reforma urbana , na Constituição de 1988, nós não colocamos o Plano Diretor. O plano foi para a Constituição Federal não por conta da iniciativa popular do movimento de reforma urbana, que reunia pesquisadores, arquitetos, engenheiros, advogados e movimentos sociais. Nós não acreditávamos em Plano Diretor. Porque nós tivemos a primeira geração de planos, na época da Ditadura, que existiam só para constar. A cidade não recebia dinheiro se não tinha Plano Diretor. E correm entre os urbanistas diversas piadas sobre esses planos. Um escritório fazia tantos deles que se enganou e fez o plano para uma cidade sobre o mapa da outra.
A cidade também é uma construção ideológica. A cidade real é uma. A cidade com a qual nós lidamos nos conceitos técnicos, principalmente a elite, é outra. O Flávio Villaça fala muito dessa construção da cidade-ficção.
CMSP – Existe alguma alternativa a esse estado de coisas?
EM -Eu faço uma proposta que é a do Plano de Ação. Substituir o Plano Diretor pelo Plano de Ação. Por quê? O Plano diretor é um amontoado de boas intenções. E como o Millôr Fernandes já disse, enquanto os sábios discutem a incerteza, os ignorantes atacam de surpresa. Enquanto você discute boas intenções, a cidade vai se construindo segundo uma conjunção de interesses. Então, você tem, como na época do Maluf, obras sem plano e planos sem obras. O plano não interfere no orçamento.
CMSP – Mas qual seria a diferença do Plano de Ação?
EM – Primeiro: controle e orientação dos investimentos. Criação de um serviço especial do uso e ocupação do solo. O que quer dizer isso? Não tem que ficar na mão de gente que ganha pouco e tem que ser transparente. Esse é um dos nossos maiores problemas. Enfoque integrado das ações sociais, ambientais e econômicas. Ou seja, integração entre as secretarias que vão fazer o Plano de Ação. E detalhamento de planos executivos específicos das prioridades: habitação, transporte público e meio ambiente, incluindo saneamento básico e drenagem. Se o Plano Diretor contiver isso aí, você pode chamar de Plano Diretor.
Esse Plano Diretor, que vem da época da Ditadura, está gagá. Nós precisamos mudar essa peça.
CMSP – Um dos grandes escândalos dos últimos tempos, aqui em São Paulo, tem a ver com habitação. É uma área com muita corrupção por uma excessiva burocratização?
EM – Não é só pela burocracia, mas acho que tem a ver. Uma lei muito detalhista, uma burocracia exagerada para aprovar as coisas. Muita gente não sabe, mas para podar uma árvore dentro de um terreno privado você tem que pedir autorização. Existem detalhes que são absurdos e convivem com a flexibilização que vem da corrupção ou da ilegalidade.
Mas você tem uma parte da cidade que é ilegal não porque a lei é rigorosa, é por desigualdade social. Essa parte da cidade não tem condição de entrar no mercado imobiliário e nem é atendida pelas políticas públicas. Às vezes é a maior parte da população, no caso de Belém, Recife. No município de São Paulo, você tem, sei lá, um quarto dos domicílios que não seguem as leis. Essa população está, grande parte dela, em área de proteção ambiental. Não é por problema legal, é muito mais por uma questão estrutural mesmo. No Brasil, quem é pobre vai para fora da lei. Mesmo quando o rico está fora da lei, ele não é considerado fora da lei. Por exemplo: loteamentos fechados. É uma ilegalidade. A lei que rege o parcelamento do solo é a Lei Federal 6.766, de 1979, que não permite fechar ruas em um loteamento. Então nós estamos em um país onde a lei tem um papel ideológico importante.
CMSP – E qual sua opinião sobre o Arco do Futuro?
EM – Eu acho que precisa ser de fato investimento privado, exceto no transporte público. E, na PPP, o privado financiar a moradia social com algum subsídio do governo. E ter inclusão social. Aí eu concordo com o Arco do Futuro. Mas não ter esse investimento que foi feito na Águas Espraiadas. Foi o poder público que bancou aquilo. Foi o poder público que valorizou a área para o Capital fazer um banquete.
CMSP – Mas a ideia do Arco do Futuro, como está no programa de governo do Haddad, é exatamente incentivar o mercado a investir em moradia popular, não?
EM – Qual é a proposta que os urbanistas estão fazendo, e eu concordo. Dependendo do porte de empreendimento ele tem que conter uma parte de habitação social. Mas você vai construir um edifício do lado de outro que vai ser habitado por uma população de baixa renda? Um dos efeitos é rebaixar o valor do metro quadrado. Mas se a gente conseguir isso é um grande avanço. E é algo que existe em muitos países. Na época da Erundina, a gente já estava fazendo essa proposta para o mercado. E eu até ouvi alguns empreendedores falarem que seria legal, porque a gente poderia ter empregados domésticos morando perto (risos).
CMSP – Mais alguma coisa que você gostaria de acrescentar?
EM – Uma coisa que eu falaria é que a questão não é técnica. Eu tenho mais de 40 anos trabalhando pelo Brasil inteiro e até no exterior já fui fazer consultoria. A questão aqui não é técnica, ela é exclusivamente política.
(Rodolfo Blancato)