“A comunicação comunitária se constitui como mediadora na dinâmica da construção da cidadania”. Num primeiro momento, a reflexão da pesquisadora de mídia Cicília Peruzzo pode parecer difícil de entender.
Mas os exemplos práticos do conceito exposto pela professora da Universidade Metodista de São Paulo, especialista em comunicação popular e movimentos sociais, mostram claramente o que o ativismo da informação pode fazer para transformar de forma positiva o cotidiano de quem mora em regiões carentes, especialmente em cidades tão heterogêneas como a capital paulista.
Entre 2007 e 2015 um grupo de jovens da periferia paulistana descobriu que era possível falar daquilo que a imprensa ignorava.
Dentro de um galpão em São Miguel Paulista, os adolescentes, todos entre 16 e 20 anos, passaram a criar e gerar conteúdo sobre os principais problemas do bairro. Desde o buraco na calçada ou da praça abandonada, até casos de opressão econômica que não eram mencionados nos noticiários tradicionais.
Durante a extensão da Avenida Jacu Pêssego, por exemplo, os jornais falavam sobre os benefícios e a contagem regressiva para a entrega da obra, mas não mencionavam o drama das famílias que acabaram desapropriadas às pressas da região.
Além de contar essas histórias, o grupo aprendeu a cobrar das autoridades melhorias para o bairro. O emprenho deles, quase despretensioso no início, causou tanto barulho que conseguiu finalmente atrair o olhar dos governantes e muitas das demandas passaram a ser atendidas.
Quem fala com orgulho sobre a trajetória dos jovens ativistas é o poeta e educador José Luiz Adeve, da Fundação Tide Setúbal, uma das entidades apoiadoras do projeto, que, segundo ele, deixou um verdadeiro legado.
“Se tornou referência para outros territórios e provocou a criação de fóruns comunitários para discutir os problemas daqueles bairros e buscar as soluções. Algo até então inédito. Realmente fica essa mensagem de que quem realmente convive com a escassez das cidades é quem se comunica melhor. Porém é muito importante que essa comunicação seja qualificada”.
Adeve foi um dos convidados da segunda parte do curso ‘Vozes Da Democracia’, realizado nesta quarta-feira (18/10) pela Escola do Parlamento da Câmara Municipal de São Paulo.
Para a professora Cicília, que também participou da aula, o projeto destacado pelo colega simboliza um dos grandes atuais papéis da mídia comunitária, que deve ir muito além de informar.
“As mídias comunitárias, populares ou alternativas, são aqueles veículos de comunicação que estão a serviço do bem público, da construção da cidadania, da ampliação dos direitos, e ao mesmo tempo proporcionam condições para que as pessoas façam essa comunicação”.
Cicília acredita que um veículo de comunicação criado dentro de uma comunidade também pode ajudar no resgate da autoestima de moradores que se viram, por anos, como alvos de estereótipos e preconceitos fomentados pelas mídias tradicionais, que preferem explorar os casos de violência dessas regiões.
Durante o painel “A Comunicação Comunitária na Construção da Cidadania”, o produtor cultural Gilberto Vieira, do Observatório das Favelas, relatou outro caso onde o interesse da comunidade pela informação de qualidade pode fazer toda a diferença.
Ele conta que tudo começou com cerca de 40 jovens de áreas carentes do Rio de Janeiro. Juntos, eles produziram o primeiro guia cultural voltado para os moradores dos morros cariocas.
A ideia deu tão certo que foi abraçada por uma ONG Internacional chamada Open Society Foundation, que trabalha com a produção e divulgação de dados jornalísticos. Por meio dessa parceria, eles criaram, há pouco mais de um ano, o Data Labe: único instituto de compilação de números, com base em informações oficiais, que prioriza a realidade das favelas.
“Estamos trabalhando justamente para usar esses dados e criar narrativas sobre nós. A gente sabe que a mídia tradicional usa muitos dados, mas com um recorte diferente da nossa realidade”, afirmou.
Vieira fez questão de compartilhar os exemplos mais bem sucedidos “A Vitória Lourenço, uma das jovens integrantes do nosso projeto, usou a base de dados do SUS para mostrar que a maioria dos óbitos de mães que morrem antes, durante ou depois dos partos são, na maioria, negras e pobres. Outro caso muito interessante é do Elói, que descobriu que o Governo praticamente ignora os transgêneros do País, porque não há sequer dados oficiais sobre essa população”, disse.
O presidente da Escola do Parlamento, Humberto Dantas, fez uma avaliação positiva do curso. Ele destacou a relevância de se discutir o papel das mídias comunitárias e periféricas e dos coletivos de jornalismo na construção da cidadania.
“É muito importante discutir esse papel tão importante das mídias comunitárias de informar aquilo que muitas vezes a imprensa tradicional não fala, mas que faz muito sentido para determinadas realidades. Então é absolutamente necessário que a gente discuta como a cidade informa nos mais diversos espaços”.