A violência contra as mulheres na Cracolândia, nas tradições gaúchas, nas relações trabalhistas entre faxineiras e empregadores, nas tribos Xavantes que impõem estupros coletivos às índias que cometem atos considerados delitos, e um alento com as novas gerações de jornalistas.
Nesta segunda-feira (30/10), a Câmara Municipal de São Paulo, com a organização do Instituto Vladimir Herzog, recebeu os grupos que produziram as dez melhores reportagens do “9º Prêmio Jovem Jornalista Fernando Pacheco Jordão”. O tema desta edição foi “Sob a ponta do iceberg: revelando a violência contra a mulher que ninguém vê”.
As equipes puderam contar para representantes da Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo), do Instituto Avon, da Intercom e da Oboré, os desafios de construir as pautas, revelando algo que deu esperança sobre o futuro da profissão: a estreita relação, muitas vezes emocionada e sensível, que esses novos repórteres desenvolveram com as fontes e personagens.
A jornalista Gabriela Vaz Garcia, da UFRS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), questiona as tradições gaúchas ao mostrar o machismo dentro dos CTG’s (Centros de Tradições Gaúchas).
“A gente queria abordar um tema mais regional. Ampliamos o machismo na tradição regionalista gaúcha”, contou. Ela explicou que a reportagem identificou o machismo dentro das músicas tradicionais. Durante a apuração, o grupo de Gabriela localizou um dos únicos CTG’s onde a presidência, ou “patronagem” como é chamada, é feita por um grupo de mulheres. O título da publicação é “E agora, tchê?”.
“São mulheres que estão lidando com essa realidade, tentando mudar. Em um CTG em Porto Alegre, a primeira mulher que assumiu o local foi ameaçada de morte por ser mulher. Um senhor da chapa adversária disse que ela ia ser apagada”, contou. A vítima de ameaça era PM, denunciou, foi reeleita, e conseguiu eleger a irmã para continuar o trabalho.
Na parte cultural, dois músicos tradicionais com letras machistas foram interpelados pela equipe formada por mulheres. “Justificou que era tradição, uma figura de linguagem. Uma das letras diz ‘me desculpa se te esfolei com as minhas esporas’. Perguntamos se isso não incentiva a violência”, relata. Segundo ela, o músico negou, dizendo que não é uma interpretação literal, mas algo tradicional.
Da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco) veio a reportagem “Do racismo ao tolhimento de direitos trabalhistas: quantas violências sofre a empregada doméstica no Brasil?”. Uma das autoras da matéria, Lara Ferreira Ximenes, disse que um dos medos das atuais mulheres que trabalham e moram em casas de família, muitas vezes vivendo o ambiente familiar alheio em detrimento da própria vida, é perder direitos conquistados recentemente.
Há dois anos, durante a gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT), foi aprovada a Lei Complementar 150, de 2015, dando garantias trabalhistas para este setor da economia dominado por mulheres.
Com a tramitação da Reforma Trabalhista, essas empregadas temem perder direitos. “Foi uma coisa refletida na fala das nossas personagens e fontes oficiais. As empregadas domésticas tiveram que lutar por direitos que já eram de outros trabalhadores desde a época da Constituição. Mesmo assim, elas não tinham direito ao seguro-desemprego. Ainda existem patrões que não pagam e querem fazer ‘arrumadinho’ para não criar vínculo. Se mesmo com a proteção da Lei, tão recente, consegue ser burlada, imagina com a reforma que está vindo”, afirmou a jornalista.
Viver com as personagens foi um dos grandes aprendizados. “O mais importante é conhecer além do arquétipo de servidora, de prestadora de serviço, não que eu imaginasse isso. Mas é a imagem do nosso subconsciente de classe média. Essas pessoas tem história, um infinito de possibilidades. E eu as vi transbordarem além de empregadas domésticas.”
Uma equipe da USP (Universidade de São Paulo) fez uma imersão na vida das mulheres dependentes químicas que vivem nas ruas da Cracolândia. O trabalho “Mulheres de Pedra” trouxe gestantes usuárias da droga que não têm o mesmo tratamento que os viciados homens, como explicou a jovem jornalista Carolina Oliveira.
“O que se constata, em primeiro lugar, é que as mulheres já vem de uma violência prévia. Elas já passaram por isso em casa, em outras situações. Já passaram por violência sexual, psicológica, tiveram filhos tanto lá [na rua] quanto antes. Então, elas chegam com uma vulnerabilidade maior de um machismo estrutural”, afirmou Carolina.
Ainda de acordo com ela, as dependentes sofrem preconceitos. “Um homem em situação de vulnerabilidade, de rua, recebe apoio para sair dessa situação. Já a mulher é questionada de ter largado a família por uma questão da figura maternal.”
Esperança
O diretor-executivo do Instituto Vladimir Herzog, Rogério Sottili, ex-secretário municipal de Direitos Humanos e ex-secretário especial de Direitos Humanos do Governo Federal, elogiou os trabalhos e a forma humana com que as jornalistas trataram suas pautas.
“A gente percebe que os antigos jornalistas e os bons repórteres dizem que os profissionais de hoje não conseguem sair da sala, largar o telefone. O que falta é este contato. Uma boa reportagem tem que ter doses imensas de emoção, de envolvimento”, afirmou.
Ele diz que o envolvimento com a fonte permite trazer dados e informações necessárias para a construção de boas reportagens. “Vendo isso no relato desses premiados, dessas agendas importantes da questão da mulher, percebemos que esse jornalismo está vivo e é importante. Foi impressionante a qualidade do trabalho dessas meninas.”
Mulheres de pedra
Universidade de São Paulo (SP)
Equipe: Vitória Gomes Batistoti Abreu, Letícia Rosa de Paiva e Carolina Ribeiro de Oliveira
Professora orientadora: Daniela Osvald Ramos
Modalidade: Revista
Atingidas
Universidade Federal de Ouro Preto (MG)
Equipe: Daniela Cristina Felix, Miriã Cristina de Souza Bonifácio e Larissa Helena Pereira de Oliveira
Professora orientadora: Karina Gomes Barbosa da Silva
Modalidade: Televisão
Debaixo da copa das árvores
Universidade Federal do Acre (AC)
Equipe: Ana Flávia de Almeida Soares e Ana Luiza de Lima Silva
Professora orientadora: Juliana Lofego
Modalidade: Multimídia
Quase da família
Universidade Federal de Pernambuco (PE)
Equipe: Lara Ferreira Ximenes e Nathallia Santos Fonseca
Professora orientadora: Adriana Maria Andrade de Santana
Modalidade: Televisão
E agora, tchê?
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (RS)
Equipe: Gabriela Vaz Garcia e Isadora Gonçalves Aires
Professora orientadora: Thaís Helena Furtado
Modalidade: Revista
Flor do mandacaru
Universidade Federal do Ceará (CE)
Equipe: Marcela de Castro Tosi, Beatriz Rabelo Cavalcante e Dominick Maia Alexandre
Professora orientadora: Naiana Rodrigues da Silva
Modalidade: Revista
Marias das Ruas
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (SP)
Equipe: Daniela Arcanjo Rodrigues, Ana Carolina Moraes Dos Santos e Ana Carolina Ribeiro dos Santos
Professor orientador: Juarez Tadeu de Paula Xavier
Modalidade: Multimídia
O abuso sexual contra as “crias de família”
Faculdade de Estudos Avançados do Pará (PA)
Equipe: Samyra Millena Rocha das Mercês e Thâmara Hévilla Magalhães
Professora orientadora: Avelina Oliveira de Castro
Modalidade: Televisão
Limbo
Universidade Federal do Rio de Janeiro (RJ)
Equipe: Bruna de Lara Morais Ferreira e Breno Crispino Lima
Professor orientador: Cristiane Costa
Modalidade: Revista
Jornal (In)visíveis
Universidade Federal de Mato Grosso (MT)
Equipe: Fernando Ribeiro Lino, Clea Torres Guedes e João Paulo Fernandes Rocha
Professor orientador: Edson Luiz Spenthof
Modalidade: Jornal