Mudança gradual de comportamento tira o paulistano de casa e o leva a ocupar o espaço público
MEIRI FARIAS
A vela no centro do palco representa a fogueira e todos dentro do pequeno teatro são, por uma noite, parte de uma tribo que se prepara para absorver um pouco da sabedoria ancestral que é perpetuada por meio da tradição oral. De olhos fechados para aguçar os outros sentidos, o único som que se escuta na biblioteca Hans Christian Andersen, localizada no Tatuapé, é a voz da índia Chirlei Almeida.
A história da Caipora é uma das primeira narrativa da abertura do Festival “A arte de contar histórias”, esse ano também chamado de Mbya Kaujo Mobeua, graças a inspiração e temática na cultura indígena. O Festival, que chega a sua décima primeira edição, é promovido pelo Sistema Municipal de Bibliotecas e circula por unidades de todas as regiões da cidade, além de serviços de extensão como Pontos e Bosques de Leitura e roteiros dos Ônibus-Biblioteca.
Como todas as atividades promovidas pela coordenadoria do SMB, o Festival carrega a vontade e a necessidade de transformar os equipamentos públicos em espaços de convivência e cultura. “A gente só vai melhorar o espaço público, quando a gente começar a ocupar de verdade. Não tem como brigar se a gente não está nele”, explica Heloisa Bonfanti, coordenadora da divisão de Programas e Projetos do Sistema, durante a abertura. Heloisa conta sobre as dificuldades, inclusive financeiras, que a Secretaria encontrou para manter o Festival, mas enfatiza a participação da comunidade para que o evento não se perca. “A coisa já está consolidada quando a população não abre mais mão daquilo”, completa. E as histórias se espalham pela cidade como a chama da vela que passa por cada contador, até a hora da fogueira apagar.
Um casarão no Brás
O esforço comunitário também foi definitivo para a preservação do Casarão da Celso García, antigo cortiço que abrigava 58 famílias até a construção de um conjunto habitacional no entorno. Localizada na região do Brás, a construção antiga será restaurada e transformada em uma casa de cultura e a tarde de sábado (17) marcou a o início da intervenção com a presença do prefeito Fernando Haddad, a deputada federal e ex-prefeita Luiza Erundina e o secretário da cultura Nabil Bonduki.
“São Paulo é a cidade do trabalho, mas justamente por ser a cidade do trabalho, também tem que ser a cidade da moradia, a cidade do lazer, a cidade da cultura”, exaltou o prefeito durante o evento. Haddad também reverenciou a colaboração da deputada Luiza Erundina, responsável pela emenda que bancará o projeto, obtida por meio de parceria com o ministério da cultura. A intervenção integra o programa de metas municipais 2013-2016 que prevê a construção, restauração, requalificação e reforma de 16 equipamentos culturais.
Segundo Bruna Fregonezi, responsável pelo departamento do patrimônio histórico, ainda não se tem um orçamento preciso do que será gasto com a restauração, já que o projeto executivo ainda será organizado, mas R$ 2 milhões foram captados junto ao ministério de cultura. Bruna explica que a casa de cultura terá ateliês, áreas de formação para arte e cursos profissionalizantes. “O projeto foi construído com a comunidade. A gente agregou o que eles requisitaram na medida do possível”, diz.
Avenida ocupada
17h do primeiro domingo do horário de verão e algumas pessoas começam a dispersar, mas uma quantidade considerável de jovens, idosos, crianças e famílias inteiras continuam a caminhar com tranquilidade pela Avenida Paulista. Mesmo com céu nublado e temperatura inferior a 20°, os paulistanos se muniram com suas bicicletas e foram ocupar a avenida cartão postal da cidade, o que a partir dessa semana deve tornar-se rotineiro aos domingos devido a medida municipal que transformou a abertura de algumas vias da cidade em política pública.
A medida gerou desconforto em alguns setores da sociedade e o Ministério Público censurou a decisão do prefeito, alegando que a cidade já havia excedido seu limite de situações onde a avenida é aberta à população e que o acordado era que apenas na Parada Gay, Réveillon e Corrida de São Silvestre, os carros fossem impedidos de entrar na avenida, chegando até a ameaçar multar a prefeitura em R$ 30 mil. Em resposta o prefeito convidou os promotores e técnicos do MP para visitar a Paulista e “tirar suas próprias conclusões”. Segundo matéria publicada pelo jornal Folha de S. Paulo no sábado (17), o promotor do MP José Fernando Cecchi Junior declinou o convite. Haddad justifica a transformação da medida em política pública com um alinhamento ao Plano Nacional de Mobilidade. Foram realizadas audiências com moradores, comerciantes e frequentadores da região, além de análises de impacto.
Para Nabil Bonduki, secretário de cultura do município, algumas pessoas resistem à medida de “fechamento da avenida” devido a cultura do automóvel que se instaurou na cidade desde o impulso da industrialização nos anos 1950. Para ele, essa geração que cresceu ouvindo Roberto Carlos cantar Cadilaques, foi projetada para ver o automóvel como símbolo de progresso. “Eu prefiro falar de ‘abertura’ da Avenida Paulista, fechamento para os carros e abertura para as pessoas. Acho que faz parte do direito a cidade”. Já a deputada Luiza Erundina acha que é necessário fazer mais. “Eu acho que faz sentido, mas não é uma única medida que resolve os problemas de acesso a cidade.” A deputada enfatiza a necessidade de que o problema seja analisado em uma perspectiva de integração metropolitana.
Além da Paulista, outras duas vias impediram a passagem de carros no domingo: Avenida Luíz Greshikin, na região do M’Boi Mirim (zona sul) e trecho da Rua Benedito Galvão em Aricanduva (zona leste). Segundo o secretário do transporte Jilmar Tatto, o objetivo é que até novembro todas as subprefeituras abram uma avenida para a população aos domingos. O secretário também afirmou que está sendo estudado um sistema de cadastramento que permita a passagem de carro dos moradores da Paulista.
Direito à cidade
“O direito à cidade é muito mais que a liberdade individual de ter acesso aos recursos urbanos. É um direito de mudar a nós mesmos mudando a cidade. Além disso, é um direito coletivo e não individual”, já dizia David Harvey, o geógrafo britânico que trabalha com questões ligadas a geografia urbana. Para Bonduki, o conceito de direito à cidade é bem amplo e engloba diversas áreas. “Significa habitação, significa equipamentos sociais, mas significa também usar o espaço público como espaço de convivência, sociabilidade e cultura.” O secretário enfatiza a importância das interações nesses espaços já que “a política nasceu no espaço público”, explica relembrando o nascimento da democracia a partir do formato da pólis grega.
Além dos projetos citados, o município promove regularmente eventos que circulam por diversas regiões da cidade por meio do Circuito SP de Cultura, que desde 2014 vem integrando espaço de cultura e descentralizando essas atividades. (“Colocar o artista local como protagonista desse processo e depois fazê-lo circular”). Bonduki também cita o projeto de abertura da Biblioteca Mário de Andrade por 24h, que teve seu pontapé inicial no dia 9 de outubro. Todos os projetos organizados pela secretaria – inclusive a programação das Bibliotecas Públicas como o Festival de Contação – podem ser consultados no site SP Cultura, uma plataforma de mapeamento colaborativo organizado pela secretaria que apresenta o cenário cultural paulistano.
Para Erundina, a cultura é a demanda mais legítima e eficaz para recuperação de jovens e enfatiza as iniciativas na periferia que devem persistir independente da mudança de governos. “A cultura é realmente o instrumento mais eficaz para garantir que nossos jovens não se percam”, diz. O secretário Bonduki também garante a preservação da diversidade. “Inclusive há uma discussão agora que vamos apresentar para a reforma da estrutura da secretaria, a gente quer mudar o nome da secretaria para ‘Secretaria das Culturas’, porque a ideia é que nós temos uma diversidade de culturas”, explica destacando que um edital para imigrantes e refugiados está sendo elaborado.
A necessidade de se transmitir cultura por meio de espaços de convivência, reflete a ânsia do cidadão que vai ocupar a cidade ou senta em volta da “fogueira” para preservar a memória de povos antigos. Bonduki destaca a alteração de comportamento. “É uma mudança cultura. E quando a gente fala de cultura, não é só música e cinema – que são importantes e necessárias. Nós estamos falando de cultura como mudança comportamental, mudança de modo de vida, mudança na maneira como relacionamos com a cidade e com as pessoas”, completa.
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* Nesta semana, foram selecionadas duas reportagens elaboradas por alunos do projeto ‘Repórter do Futuro’. A primeira tem a assinatura de Ana Paula Bimbati e Clara Assunção; a segunda é de Meiri Farias.
O Portal da Câmara publica semanalmente os melhores textos de alunos que participam do projeto ‘Repórter do Futuro’ – uma parceria da Oboré (Projetos Especiais em Comunicação e Arte) com a Escola do Parlamento da Câmara Municipal, como uma maneira de estimular a excelência jornalística dos futuros profissionais do setor.